Em setembro de 2017, uma performance artística no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) tornou-se o epicentro de uma intensa controvérsia nacional.
Tudo isso porque o vídeo de uma criança tocando brevemente o pé de um artista nu durante a performance “La Bête” viralizou nas redes sociais, desencadeando acusações graves, manifestações públicas e um acalorado debate sobre os limites da expressão artística. Este caso, que ficou conhecido como “Caso MAM-SP”, transcendeu o universo das artes para se tornar um símbolo das tensões culturais e políticas no Brasil contemporâneo.
Nosso objetivo não é defender um lado específico desta polêmica, mas analisar os múltiplos sentidos que emergiram deste episódio. Através das lentes da semiótica, da história da arte e da análise cultural, buscaremos compreender: Quais são os limites da arte contemporânea? E, talvez mais importante, quem define esses limites?
O Caso MAM-SP em Contexto

Museu de Arte Moderna de São Paulo, palco da controvérsia em 2017
Em 26 de setembro de 2017, na abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira no MAM-SP, o coreógrafo Wagner Schwartz apresentou a performance “La Bête”. Inspirada na série “Bichos” da renomada artista Lygia Clark, a obra consistia no artista nu manipulando uma réplica de plástico de uma das esculturas de Clark, convidando posteriormente o público a interagir com seu corpo, “articulando-o” como se fosse o próprio objeto artístico.
Durante a apresentação, uma criança de aproximadamente quatro anos, acompanhada de sua mãe (a coreógrafa Elisabeth Finger), aproximou-se e tocou brevemente o pé do artista. Este momento foi filmado e, ao ser compartilhado nas redes sociais sem o contexto completo, gerou uma onda de indignação. Grupos políticos e movimentos conservadores classificaram o episódio como “pedofilia” e “erotização infantil”, enquanto artistas e instituições culturais defenderam a liberdade de expressão artística.
“O trabalho apresentado na ocasião não tem conteúdo erótico e trata-se de uma leitura interpretativa da obra Bicho, de Lygia Clark, historicamente reconhecida pelas suas proposições artísticas interativas.”
Nota oficial do MAM-SP
É importante ressaltar que o Ministério Público investigou o caso e não encontrou elementos que configurassem crime, arquivando o processo. No entanto, o debate público já havia ultrapassado as questões jurídicas, transformando-se em um símbolo das disputas culturais e políticas no país.
Nudez como Signo: Arte versus Sociedade

Série “Bichos” de Lygia Clark, que inspirou a performance “La Bête”
Um dos aspectos mais fascinantes do Caso MAM-SP é como o mesmo elemento – a nudez – pode adquirir significados radicalmente diferentes dependendo do contexto em que é interpretado. Esta é a essência da análise semiótica: compreender como os signos mudam de sentido conforme os códigos culturais que os interpretam.
Nudez no Museu
No contexto museológico e da história da arte, a nudez frequentemente simboliza:
- Vulnerabilidade e autenticidade do corpo humano
- Materialidade como suporte artístico
- Crítica à objetificação e museificação da arte
- Continuidade com tradições artísticas milenares
Nudez nas Redes Sociais
Quando transportada para as redes sociais, a mesma nudez passa a significar:
- Transgressão de tabus sociais
- Potencial erotização e sexualização
- Ameaça aos valores familiares tradicionais
- Provocação deliberada e questionável
Esta mudança radical de significado não ocorre por uma alteração no signo em si (o corpo nu do artista), mas pela transformação do contexto e dos códigos interpretativos. No ambiente controlado do museu, com sinalização adequada sobre o conteúdo, a nudez é lida como elemento artístico.
Já no ambiente fragmentado e descontextualizado das redes sociais, predominam leituras baseadas em códigos morais e religiosos que associam nudez exclusivamente à sexualidade.
As Leituras em Disputa
O Caso MAM-SP evidenciou como diferentes grupos sociais podem construir interpretações completamente distintas sobre o mesmo evento. Não se trata simplesmente de opiniões divergentes, mas de verdadeiros contratos de leitura que partem de premissas fundamentalmente diferentes.
Leitura Artística-Institucional
Para o campo artístico e as instituições culturais, a performance se insere em uma longa tradição de arte corporal e interativa. A nudez é vista como elemento formal, não sexual, e a interação com o público (incluindo crianças acompanhadas) é parte da proposta estética que remonta ao trabalho de Lygia Clark, que buscava romper a barreira entre obra e espectador.
Leitura Conservadora-Moral
Para grupos conservadores e religiosos, a mesma cena é interpretada através de códigos morais que não separam nudez de sexualidade. A presença de uma criança neste contexto é automaticamente lida como exposição inadequada e potencialmente danosa, independentemente da intenção artística declarada.
Leitura Jurídica-Normativa
O sistema jurídico, por sua vez, avaliou o caso através de códigos legais específicos, buscando determinar se houve violação de leis de proteção à infância. A ausência de intenção erótica e a presença da mãe supervisionando a criança foram elementos decisivos para o arquivamento do caso.
É importante notar que o caso ocorreu em 2017, período de intensificação das chamadas “guerras culturais” no Brasil. No mesmo ano, a exposição “Queermuseu” em Porto Alegre foi cancelada após protestos semelhantes, evidenciando como as instituições artísticas se tornaram campos de batalha simbólicos para disputas políticas mais amplas.
Quando o Frame Muda: Do Museu à Timeline

Recontextualização do caso nas redes sociais alterou completamente sua interpretação
Um aspecto crucial para entender o Caso MAM-SP é o conceito de “frame” ou enquadramento. A performance “La Bête” foi concebida para um contexto específico: um espaço museológico, com sinalização sobre conteúdo sensível, dentro de uma tradição artística reconhecível para o público frequentador de exposições de arte contemporânea.
Quando fragmentos da performance foram extraídos desse contexto original e inseridos no ambiente das redes sociais, ocorreu uma mudança radical de frame. O vídeo que circulou não mostrava a sinalização do museu, não explicava a referência a Lygia Clark, não mencionava que a criança estava acompanhada da mãe, e frequentemente vinha acompanhado de legendas acusatórias.
Este fenômeno de descontextualização não é exclusivo do Caso MAM-SP. Performances de Marina Abramović, capas de discos de bandas como Blind Faith ou Nirvana, e diversas outras manifestações artísticas já passaram por processos semelhantes de reinterpretação ao migrarem de seus contextos originais para novos ambientes interpretativos.
A questão central aqui não é apenas determinar qual interpretação está “correta”, mas compreender como os significados são construídos socialmente e como a migração entre diferentes esferas culturais (do museu para as redes sociais, da crítica especializada para o debate político) transforma radicalmente o sentido de uma mesma obra ou evento.
Limites da Arte ou Limites da Mediação?

Exemplo de sinalização sobre conteúdo sensível em exposições de arte
Um dos debates mais produtivos surgidos do Caso MAM-SP não diz respeito a proibir ou permitir determinadas expressões artísticas, mas sim a como mediar adequadamente a relação entre obras potencialmente sensíveis e públicos diversos. A questão central talvez não seja “o que pode ser arte?”, mas “como apresentar essa arte responsavelmente?”.
Práticas de Mediação em Museus
Sinalização Clara
Informações visíveis sobre conteúdo sensível, incluindo nudez, violência ou temas potencialmente perturbadores.
Classificação Indicativa
Recomendações de faixa etária apropriada, respeitando o desenvolvimento cognitivo e emocional.
Mediação Ativa
Presença de educadores preparados para contextualizar obras e facilitar o diálogo com diferentes públicos.
O MAM-SP afirmou que havia sinalização adequada sobre a nudez na sala onde ocorreu a performance. No entanto, o caso levanta questões importantes sobre como as instituições culturais podem aprimorar seus protocolos de mediação, especialmente em um contexto onde qualquer evento pode ser rapidamente descontextualizado e viralizado nas redes sociais.
Também é relevante considerar a responsabilidade dos artistas em antecipar possíveis leituras sociais de suas obras, não para se autocensurar, mas para participar ativamente do processo de mediação e contextualização de seu trabalho.
O Caso como “Pânico Moral” Contemporâneo

Manchetes sensacionalistas amplificaram o “pânico moral” em torno do caso
O conceito sociológico de “pânico moral”, desenvolvido por Stanley Cohen, ajuda a compreender a dinâmica que se estabeleceu em torno do Caso MAM-SP. Pânicos morais são reações desproporcionais a comportamentos percebidos como ameaças aos valores e interesses da sociedade, frequentemente amplificados pela mídia e por grupos de interesse.
O Caso MAM-SP reuniu elementos clássicos de um pânico moral contemporâneo:
- Um “folk devil” claramente identificável (o artista nu e a instituição que o abrigou)
- Uma suposta ameaça a um grupo vulnerável (crianças)
- Amplificação midiática e digital (viralização do vídeo)
- Mobilização de grupos de interesse com agendas políticas mais amplas
- Demandas por maior controle social e punição exemplar
É significativo que o caso tenha ocorrido em 2017, mesmo ano da controvérsia em torno da exposição “Queermuseu” em Porto Alegre. Ambos os episódios se tornaram símbolos de uma crescente polarização cultural no Brasil, onde manifestações artísticas foram transformadas em campos de batalha para disputas políticas mais amplas sobre valores, família, sexualidade e os limites da liberdade de expressão.
O Caso MAM-SP não foi um evento isolado, mas parte de um padrão recorrente na história cultural: momentos em que a arte se torna o epicentro de ansiedades sociais mais amplas. Casos semelhantes ocorreram com obras de Robert Mapplethorpe nos EUA dos anos 1980, com o “Sensação” na Inglaterra dos anos 1990, e continuam a surgir em diferentes contextos culturais.
Semiótica do Escândalo: Signos em Conflito
A semiótica, ciência que estuda os signos e seus significados, oferece ferramentas valiosas para compreender o Caso MAM-SP. O corpo nu do artista funcionou como um significante que, dependendo do código cultural aplicado, produziu significados radicalmente diferentes:
| Código Interpretativo | Leitura do Corpo Nu | Leitura da Interação com a Criança |
| Artístico-Estético | Material expressivo, vulnerabilidade | Participação espontânea, descoberta |
| Moral-Religioso | Obscenidade, impureza | Exposição inadequada, corrupção |
| Jurídico-Legal | Potencial ofensa ao pudor | Questão de supervisão parental |
| Político-Ideológico | Símbolo de degeneração/libertação | Evidência de agenda cultural |
O conflito entre estas diferentes leituras não é apenas uma questão de opinião, mas reflete estruturas profundas de significação cultural. Cada grupo social opera com seus próprios códigos semióticos, e o que torna casos como o do MAM-SP tão explosivos é precisamente o choque entre sistemas de significação incompatíveis.
Este fenômeno exemplifica o que o semioticista Umberto Eco chamava de “guerras semióticas” – disputas não apenas sobre o significado de signos específicos, mas sobre quais códigos têm legitimidade para interpretar esses signos em primeiro lugar.
Perspectiva Histórica: Nudez na Arte Brasileira

Tradição da nudez na arte brasileira: do acadêmico ao contemporâneo
Para contextualizar adequadamente o Caso MAM-SP, é importante reconhecer que a nudez tem uma longa história na arte brasileira. Desde as pinturas acadêmicas do século XIX, passando pelo modernismo, até as experimentações contemporâneas, o corpo nu tem sido um elemento recorrente na produção artística nacional.
Artistas como Victor Meirelles, Rodolfo Amoedo, Anita Malfatti, Di Cavalcanti e muitos outros incorporaram a nudez em suas obras, frequentemente gerando debates sobre os limites da representação. No entanto, o que distingue casos como o do MAM-SP é a transição da representação para a apresentação – o corpo real substituindo sua imagem.
A performance “La Bête” de Wagner Schwartz se insere em uma tradição específica da arte contemporânea brasileira que remonta às experiências neoconcretistas dos anos 1960, especialmente o trabalho de Lygia Clark e Hélio Oiticica, que buscavam romper as barreiras entre obra, artista e público, transformando o espectador em participante ativo.
“O que proponho é um diálogo. O objeto é um mediador. Quanto mais você o manipula, mais você se torna íntimo dele. Até que chega um momento em que você não sabe mais o que é você e o que é o objeto.”
Lygia Clark sobre a série “Bichos”
Conclusão: Os Limites Móveis da Arte

A mediação adequada é fundamental para a experiência artística contemporânea
O Caso MAM-SP nos mostra que os limites da arte não são fixos nem universais – eles são construídos socialmente, negociados culturalmente e contestados politicamente. A mesma performance pode ser simultaneamente uma expressão artística legítima e uma transgressão inaceitável, dependendo dos códigos culturais através dos quais é interpretada.
Mais do que buscar uma resposta definitiva sobre o que “pode” ou “não pode” ser arte, talvez seja mais produtivo refletir sobre como criar condições para que diferentes expressões artísticas possam existir respeitando a diversidade de sensibilidades e valores presentes na sociedade. Isso passa necessariamente por práticas responsáveis de mediação, sinalização clara de conteúdos sensíveis e diálogo aberto entre instituições culturais e seus diversos públicos.
O verdadeiro desafio talvez não seja estabelecer limites rígidos para a arte, mas desenvolver uma literacia visual e cultural que permita aos cidadãos navegar criticamente pelo universo das imagens e performances contemporâneas, compreendendo seus múltiplos níveis de significação e contextos.
Como sugeriu o crítico de arte Arthur Danto, vivemos em um mundo da arte “pós-histórico”, onde não há mais narrativas dominantes que determinem o que a arte deve ser. Neste cenário, a questão central talvez não seja “isto é arte?”, mas “que tipo de conversa esta obra nos convida a ter?”. E, no caso específico de obras que envolvem elementos sensíveis como nudez, a pergunta crucial pode ser: “como garantir que esta conversa aconteça em condições adequadas de contextualização e mediação?”.
“A arte não traz respostas, mas multiplica perguntas. Talvez, no fim, o verdadeiro limite da arte seja justamente esse: até onde estamos dispostos a questionar nossos próprios códigos de leitura.”