Berta Loran: semiótica do riso na cultura pop brasileira

Da Polônia aos palcos brasileiros, Berta Loran transcendeu o papel de simples atriz para se tornar um signo cultural do humor nacional. Nascida Basza Ajs em Varsóvia, fugindo do nazismo para encontrar no Brasil não apenas um lar, mas um palco onde sua arte floresceria por mais de oito décadas.

Este artigo propõe uma análise semiótica de como o riso de Berta se transformou em linguagem universal, codificada pela cultura brasileira, e como sua presença midiática construiu um arquétipo feminino indissociável do humor popular que permanece vivo na memória coletiva.

Uma ponte entre culturas: a estrangeira que riu para pertencer

Quando Berta Loran chegou ao Brasil em 1937, aos 11 anos, trazia consigo não apenas as memórias traumáticas da perseguição nazista, mas também um talento inato para transformar dor em riso. Instalada com a família em um cortiço na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, a jovem polonesa encontrou no humor uma linguagem universal que transcendia barreiras culturais e linguísticas.

Como signo de integração cultural, Berta representa o fenômeno semiótico da transculturalidade. Ao abandonar o nome Basza Ajs para adotar Berta Loran, ela não apenas criou uma identidade artística, mas simbolizou o processo de ressignificação cultural vivido por tantos imigrantes.

O corpo estrangeiro que se comunica através do riso torna-se, paradoxalmente, um dos símbolos mais autênticos da brasilidade.

“Sempre ri das dificuldades, até da fome que a gente passava. Era um azougue. Lavava louça de patins, vivia quebrando pratos”, revelou a atriz em entrevista, demonstrando como o humor foi sua estratégia de sobrevivência e integração.

A trajetória de Berta ilustra o que o semioticista Yuri Lotman chamaria de “fronteira semiótica” – aquele espaço onde diferentes sistemas culturais se encontram e produzem novos significados. Sua figura representa o ponto de contato entre a tradição judaica europeia e o humor brasileiro em formação, gerando uma síntese cultural única que enriqueceu nossa comediografia.

Como o corpo virou comédia? A linguagem corporal como signo icônico

Na semiótica do riso, o corpo é texto. E poucos artistas souberam escrever com o próprio corpo como Berta Loran. Sua expressividade física hiperbólica, os gestos amplos, a entonação característica e o timing perfeito constituem um sistema de signos icônicos que se tornaram imediatamente reconhecíveis pelo público brasileiro.

Personagens como Frosina, da novela “Amor com amor se paga” (1984), e a inesquecível Manuela D’Além-Mar, da “Escolinha do Professor Raimundo”, demonstram como Berta construiu uma linguagem corporal única. Sua voz anasalada, o sotaque que nunca abandonou completamente e os trejeitos exagerados formavam um conjunto semiótico que comunicava humor antes mesmo da primeira palavra ser pronunciada.

Esse corpo-signo de Berta opera no que Charles Sanders Peirce classificaria como “primeiridade” – aquela percepção imediata que antecede a racionalização. Ao ver Berta em cena, o espectador já sorri, numa resposta quase pavloviana ao conjunto de signos que ela mobiliza.

A teatralidade como código cultural

A formação teatral de Berta, iniciada sob influência do pai – ator e alfaiate do teatro ídiche – manifestou-se em sua abordagem corporal da comédia. Mesmo na televisão, meio que tende a valorizar a naturalidade, ela manteve uma teatralidade que remete às tradições da comédia popular europeia, do teatro de revista brasileiro e das chanchadas cinematográficas.

Essa teatralidade não era apenas estilística, mas semioticamente significativa: representava a persistência de tradições cômicas populares em meio à modernização dos meios de comunicação. O corpo exagerado de Berta funcionava como resistência cultural, preservando formas de expressão que remontam ao teatro popular e às tradições orais.

Berta como mito barthesiano: a atriz que virou signo cultural

Na perspectiva de Roland Barthes, o mito é um sistema semiológico de segunda ordem, onde um signo (composto de significante e significado) torna-se apenas significante em um novo sistema. Berta Loran, como pessoa real, transformou-se em significante de um novo significado: o arquétipo da comediante resiliente, da imigrante que conquistou o Brasil através do riso.

“O mito não nega as coisas; sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, ele as purifica, as inocenta, as fundamenta em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza que não é a da explicação, mas a da constatação.” — Roland Barthes, Mitologias

Roland Barthes

Esse processo de mitificação ocorreu através da presença constante de Berta na mídia brasileira por mais de oito décadas. Do cinema da era da chanchada à televisão contemporânea, sua figura tornou-se um signo reconhecível que transcende a pessoa física para representar valores culturais: resiliência, adaptabilidade, bom humor diante das adversidades.

O arquétipo feminino no humor brasileiro

Como signo cultural, Berta ajudou a construir um arquétipo feminino específico no humor brasileiro: a mulher madura, de origem estrangeira, cuja comicidade deriva tanto da sabedoria de vida quanto dos contrastes culturais. Esse arquétipo, que encontra ecos em outras comediantes como Dercy Gonçalves e Nair Bello, representa uma tradição cômica que valoriza a experiência feminina e subverte expectativas sociais.

A longevidade de sua carreira – atuando até depois dos 90 anos – também transformou Berta em signo de resistência ao etarismo na indústria do entretenimento. Sua presença constante na mídia desafiava os padrões que tendem a invisibilizar artistas idosos, especialmente mulheres.

A semiótica do riso na cultura pop brasileira

O riso provocado por Berta Loran não é apenas uma resposta fisiológica, mas um fenômeno semiótico complexo que revela aspectos fundamentais da cultura brasileira. Como linguagem universal, o humor de Berta funcionava como mediador entre o popular e o sofisticado, entre tradição e modernidade.

Riso como resistência

O humor de Berta, nascido da experiência traumática da perseguição nazista, representa semioticamente a função do riso como mecanismo de resistência. “Saí para nunca mais voltar”, disse sobre deixar a Polônia – transformando o exílio forçado em material para sua arte.

Riso como integração

Como imigrante que conquistou o Brasil através do humor, Berta simboliza o poder integrador do riso em uma sociedade multicultural. Seu sotaque, que poderia ser barreira, tornou-se marca registrada e elemento de identificação afetiva.

Riso como memória

Na cultura midiática brasileira, o riso de Berta funciona como dispositivo mnemônico coletivo. Suas personagens ativam memórias afetivas de diferentes gerações, criando pontes temporais através do humor compartilhado.

A nostalgia midiática como fenômeno semiótico

A presença de Berta Loran na memória coletiva brasileira exemplifica o que a semiótica da cultura chama de “texto cultural” – aquelas manifestações que permanecem ativas na consciência de uma comunidade mesmo após seu momento original de produção. Frases, gestos e personagens de Berta continuam sendo referenciados e reconhecidos, mesmo por gerações que não acompanharam sua carreira em tempo real.

Esse fenômeno de nostalgia midiática não é apenas afetivo, mas semioticamente significativo: representa a capacidade de certos signos culturais de transcenderem seu contexto original e continuarem gerando significados em novos contextos. A “Manuela D’Além-Mar” de Berta não é apenas uma personagem de um programa de humor dos anos 1990, mas um signo cultural que continua a circular e produzir sentidos na cultura brasileira contemporânea.

Legado e permanência simbólica: o riso que não morre

A morte física de Berta Loran, ocorrida aos 99 anos, representa uma ruptura biológica, mas não semiótica. Como signo cultural, Berta permanece viva na semiose contínua da cultura brasileira. Suas personagens, seu estilo de humor e sua trajetória de vida continuam gerando significados e influenciando novas gerações de artistas e espectadores.

O legado semiótico de Berta pode ser observado em diferentes níveis:

  • Na permanência de seus personagens no imaginário coletivo
  • Na influência sobre gerações posteriores de comediantes
  • Na valorização do humor como estratégia de resistência cultural
  • Na representação da experiência imigrante na cultura brasileira
  • Na preservação de tradições cômicas populares

Como afirma o semioticista Iuri Lotman, a cultura funciona como uma “memória não-hereditária da coletividade”. O riso de Berta Loran, codificado em inúmeros textos culturais (filmes, programas de TV, entrevistas), continua a ser transmitido e reinterpretado, participando ativamente da construção da identidade cultural brasileira.

“O humor é tudo na vida.”

Berta Loran

Esta frase, repetida pela atriz em diversas entrevistas, sintetiza não apenas sua filosofia pessoal, mas o núcleo semiótico de seu legado: a compreensão do riso como elemento vital, como estratégia de sobrevivência e como linguagem universal capaz de transcender barreiras culturais, linguísticas e temporais.

O riso como herança cultural imortal

A trajetória de Berta Loran representa um fascinante estudo de caso para a semiótica cultural. De refugiada polonesa a ícone do humor brasileiro, sua vida ilustra como signos culturais migram, transformam-se e adquirem novos significados em diferentes contextos. O corpo estrangeiro que se comunica através do riso universal; a experiência traumática que se converte em comédia; a presença midiática que se transforma em mito cultural – todos esses processos revelam a complexidade semiótica da figura de Berta.

Como signo cultural, Berta Loran transcende sua existência física para continuar atuando no imaginário coletivo brasileiro. Seu riso ecoa nas memórias afetivas de diferentes gerações, seu corpo expressivo permanece como referência para novos artistas, e sua trajetória de vida continua inspirando reflexões sobre resiliência, adaptabilidade e o poder transformador do humor.

Mesmo fora de cena, Berta Loran continua presente na semiose cultural brasileira – prova de que, como ela mesma dizia, “o humor é tudo na vida”. E, poderíamos acrescentar, também na posteridade.

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