Em 1988, o Brasil parou para acompanhar um dos maiores mistérios da teledramaturgia nacional. A pergunta “Quem Matou Odete Roitman?” ultrapassou as fronteiras da ficção e se instalou no imaginário coletivo brasileiro, transformando-se em um fenômeno cultural sem precedentes. Mais que um simples assassinato ficcional, a morte da vilã interpretada por Beatriz Segall na novela Vale Tudo se converteu em um poderoso signo que continua a ecoar na sociedade brasileira até hoje.
O mistério transcendeu a trama de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères para se tornar uma metáfora da própria identidade nacional. Quando milhões de brasileiros se perguntavam quem havia puxado o gatilho contra a poderosa empresária, estavam, na verdade, questionando valores, comportamentos e estruturas de poder que permeavam o Brasil da redemocratização. Este artigo propõe uma análise semiótica desse fenômeno, investigando como um assassinato ficcional se transformou em um espelho da moralidade brasileira.
O Símbolo de Odete Roitman: Poder e Moralidade Elitista
Odete Roitman não era apenas uma personagem, mas um arquétipo cuidadosamente construído para representar o poder econômico desconectado da realidade social brasileira. Como signo, ela encarnava a elite que se distanciava do povo enquanto ditava regras morais que ela própria não seguia. Sua presença imponente, seu sotaque afrancesado e seu desprezo pelo Brasil funcionavam como significantes de uma classe que se via acima da nação que explorava.
Como observa Umberto Eco em sua obra “Tratado Geral de Semiótica”, personagens ficcionais podem funcionar como “signos-tipo” que condensam características sociais reconhecíveis. Odete era precisamente isso: a personificação da moral hipócrita que marcava o Brasil da Nova República – um país que se democratizava politicamente, mas mantinha intactas suas estruturas de privilégio econômico.
O próprio sobrenome “Roitman” carrega uma carga semiótica significativa. De origem judaica, o nome conferia à personagem uma aura de estrangeiridade, reforçando a ideia de uma elite que, mesmo vivendo no Brasil, mantinha-se culturalmente distante, com valores e referências importados. Como destaca Roland Barthes em “Mitologias”, nomes próprios na ficção funcionam como códigos que ativam redes de significados culturais.
“Odete Roitman não era apenas uma vilã, mas um signo complexo que representava o Brasil que se recusava a se reconhecer como Brasil.” – Gilberto Braga, criador de Vale Tudo
Em entrevista à Folha de São Paulo, 1998
A morte de Odete, portanto, não foi apenas um plot twist, mas um evento semiótico carregado de significados. Representava simbolicamente o colapso de uma ordem moral artificial, construída por uma elite que pregava valores que não praticava. O assassinato funcionava como uma ruptura nessa estrutura de aparências, expondo as contradições de uma sociedade em transformação.
A Pergunta como Signo: “Quem matou?” e a Incerteza Moral
A pergunta “Quem Matou Odete Roitman?” transcendeu seu contexto original para se tornar um signo autônomo na cultura brasileira. Aplicando os conceitos de Charles Sanders Peirce, podemos analisar esta pergunta como um signo que estabelece uma relação triádica: o representamen (a pergunta em si), o objeto (o mistério do assassinato) e o interpretante (o efeito produzido na mente do público).

A pergunta “Quem Matou Odete Roitman?” estampou manchetes por todo o Brasil – imagem ilustrativa
O interessante é que, semioticamente, a pergunta se tornou mais importante que a resposta. Ela representava a busca coletiva por culpados numa sociedade que evitava a autocrítica. Quando milhões de brasileiros especulavam sobre a identidade do assassino, estavam, na verdade, participando de um ritual coletivo de julgamento moral, projetando seus próprios valores e preconceitos nos personagens suspeitos.
Como observa Roland Barthes em “S/Z“, o mistério em narrativas populares funciona como um código hermenêutico que mantém o interesse do público através do adiamento da revelação. No caso de “Quem Matou Odete Roitman?”, esse adiamento foi tão eficaz que a pergunta se descolou da própria novela, tornando-se um fenômeno cultural independente.
A incerteza sobre a identidade do assassino funcionava como metáfora da própria incerteza moral que pairava sobre o Brasil no final dos anos 1980 – um país que emergia da ditadura militar e buscava redefinir seus valores. A dúvida era, em si mesma, um signo da crise de identidade nacional.
Pesquisas da época revelaram que 86% dos telespectadores discutiam ativamente suas teorias sobre o assassinato com amigos e familiares. Delegados de polícia foram entrevistados para analisar o caso como se fosse real. A fronteira entre ficção e realidade se tornava cada vez mais tênue, demonstrando o poder do signo “Quem Matou Odete Roitman?” como catalisador de discussões morais.
Vale Tudo: um Espelho da Pós-Verdade
O título “Vale Tudo” funcionava como um código moral que antecipava, em décadas, o que hoje chamamos de era da pós-verdade. A expressão, que em português brasileiro significa “tudo é permitido”, sinalizava um universo onde as fronteiras entre certo e errado se diluíam em função de interesses pessoais. Semioticamente, o título operava como um metassigno que enquadrava toda a narrativa.
Aplicando o conceito de “simulacro” de Jean Baudrillard, podemos entender Vale Tudo como uma simulação que, paradoxalmente, revelava verdades profundas sobre o Brasil. A novela criava um universo onde a corrupção, o oportunismo e a falta de escrúpulos eram normalizados – não como fantasia, mas como reflexo amplificado da realidade brasileira.
Fake News
A manipulação da informação por Marco Aurélio (Reginaldo Faria) antecipava o fenômeno das fake news, mostrando como a verdade podia ser distorcida para benefício próprio.
Corrupção Sistêmica
Os esquemas de corrupção na TCA refletiam práticas que, anos depois, seriam expostas em escândalos reais como o Mensalão e a Lava Jato.
Moral Seletiva
Personagens como Odete condenavam publicamente comportamentos que praticavam em privado, antecipando a hipocrisia moral do discurso público contemporâneo.
O assassinato de Odete Roitman, nesse contexto, funcionava como o clímax dessa narrativa sobre a moralidade fluida. A pergunta “quem matou?” era, na verdade, um questionamento sobre quem, naquele universo de valores corrompidos, ainda mantinha princípios éticos suficientes para não cometer um assassinato.
Como observa Umberto Eco em “Os Limites da Interpretação”, narrativas populares frequentemente funcionam como laboratórios onde sociedades testam seus limites morais. Vale Tudo foi precisamente isso: um experimento semiótico onde o Brasil pôde contemplar, através da ficção, suas próprias contradições éticas.
“Vale Tudo foi um espelho impiedoso colocado diante da sociedade brasileira. O país se viu refletido e não gostou do que viu – mas não conseguia parar de olhar.”
Esther Hamburger, antropóloga e pesquisadora de televisão
O Desfecho e o Significado da Revelação
Quando finalmente se revelou que Leila (Cássia Kis) era a assassina de Odete Roitman, o Brasil já havia criado mil teorias alternativas. A revelação, ironicamente, foi quase anticlimática – não porque decepcionasse, mas porque o processo coletivo de especulação havia se tornado mais significativo que o próprio desfecho.
Em termos semióticos, ocorreu o que Umberto Eco chamaria de “semiose ilimitada” – o signo “Quem Matou Odete Roitman?” gerou tantas interpretações e reinterpretações que acabou desenvolvendo uma vida própria, independente da resposta canônica oferecida pela novela.
O fato de Leila ter matado Odete por engano – acreditando estar eliminando a amante de seu marido – carregava uma ironia semiótica profunda: o assassinato que mobilizou o país não tinha motivação política ou econômica, mas passional. Era um crime banal, cometido por equívoco, desmistificando a aura de grande conspiração que o público havia construído.
Vale Tudo mesmo?
Essa banalidade do mal, para usar o conceito de Hannah Arendt, funcionava como uma metáfora da própria sociedade brasileira – onde grandes injustiças muitas vezes resultam não de elaboradas conspirações, mas de pequenos egoísmos e enganos cotidianos.
A catarse coletiva proporcionada pela revelação não estava na identidade do assassino, mas na confirmação de que, num universo onde “vale tudo”, até mesmo um assassinato podia resultar de um mal-entendido banal. Como observa Jesús Martín-Barbero em “Dos Meios às Mediações”, as telenovelas latino-americanas frequentemente funcionam como rituais coletivos onde sociedades processam suas contradições.
O último capítulo de Vale Tudo reuniu milhões de brasileiros em frente à TV
Interessantemente, na versão internacional de Vale Tudo, produzida para o mercado hispânico em 2002, o assassino era outro personagem – o mordomo Eugênio. Essa mudança revela como o signo “Quem Matou Odete Roitman?” podia ser reinterpretado em diferentes contextos culturais, mantendo sua função narrativa mas adaptando-se a diferentes sensibilidades morais.
Conclusão: O Eterno Retorno da Pergunta
Mais de três décadas depois, a pergunta “Quem Matou Odete Roitman?” continua ressoando na cultura brasileira. Não apenas como nostalgia, mas como um signo que periodicamente se reatualiza para questionar a moralidade nacional. Cada novo escândalo político, cada nova crise ética parece recolocar a mesma questão fundamental: quem, afinal, é responsável pela morte dos valores éticos no Brasil?
O mistério de Odete Roitman continua presente na cultura digital brasileira
Como signo cultural, “Quem Matou Odete Roitman?” funciona como o que Yuri Lotman chamaria de “texto da cultura” – um elemento que, mesmo deslocado de seu contexto original, continua a gerar significados e a servir como código para interpretar novos fenômenos sociais.
No Remake
O remake de Vale Tudo em 2025, com Débora Bloch no papel de Odete, demonstra a vitalidade desse signo. A nova versão não é apenas uma releitura nostálgica, mas uma recontextualização do mesmo questionamento moral em um Brasil transformado pela revolução digital, pelas redes sociais e por novas formas de “vale-tudismo” ético.
Talvez a permanência dessa pergunta na cultura brasileira revele nossa incapacidade coletiva de resolver o enigma mais profundo que ela propõe: não quem matou uma personagem ficcional, mas quem continua matando, diariamente, a possibilidade de uma ética pública consistente no Brasil.
“A pergunta ‘Quem Matou Odete Roitman?’ sobrevive porque, no fundo, ainda estamos tentando descobrir quem matou nossa capacidade de indignação moral genuína.”
Maria Rita Kehl, psicanalista e crítica cultural
Nesse sentido, a análise semiótica desse fenômeno cultural nos convida não apenas a revisitar um momento marcante da teledramaturgia brasileira, mas a refletir sobre como signos ficcionais podem capturar e expressar dilemas morais profundos de uma sociedade. O mistério de Odete Roitman, afinal, nunca foi apenas sobre um assassinato ficcional, mas sobre o Brasil que nos tornamos – e o que ainda podemos ser.




