E se o corpo fosse o primeiro território que habitamos — e também o último?
Antes de qualquer fronteira geográfica, é na pele que se inscrevem as histórias, as feridas e os gestos que nos definem. O corpo não é apenas biologia: é um mapa em movimento, um arquivo vivo de identidades, memórias e resistências. Cada marca, cada cicatriz e cada performance recontam, de forma silenciosa ou explosiva, o modo como habitamos o mundo e somos habitados por ele.
Na arte contemporânea, essa consciência transformou o corpo em um território narrativo, onde se cruzam dimensões pessoais e políticas, biológicas e simbólicas. Quando artistas fazem do próprio corpo o suporte da criação, eles reconfiguram o espaço da arte — deslocando-o da tela, do palco ou do museu para o campo sensível da carne, da dor e da presença.
Esse movimento não é apenas estético: é também um gesto de resistência.
Em tempos de controle biopolítico, de vigilância e padronização dos corpos, transformar o corpo em arte é reivindicar autonomia sobre o próprio existir. O corpo, então, deixa de ser objeto de discurso e torna-se sujeito narrador — um território onde as histórias se escrevem e se reescrevem, revelando as fraturas, potências e possibilidades do humano.
Este artigo explora como diferentes manifestações artísticas — da performance à arte indígena, das intervenções corporais às experiências digitais — utilizam o corpo como espaço de criação e contestação. Mais do que analisar obras, busca-se aqui compreender como o corpo se converte em linguagem, em território simbólico e político, em um campo de disputa onde se entrelaçam arte, poder e existência.

O Corpo e o Território: Geografias do Poder

Se o corpo é o primeiro território, ele também é o mais disputado.
Toda sociedade inscreve nele seus códigos, limites e proibições — o corpo é cartografado por forças de poder, por normas culturais e por memórias coletivas. Assim como um território geográfico, ele pode ser invadido, colonizado ou libertado.
A arte contemporânea tem reconhecido essa dimensão política e simbólica, transformando o corpo em um espaço onde se reconfiguram as relações entre indivíduo, comunidade e poder.
A concepção do corpo como território não é recente, mas ganhou novas camadas nas últimas décadas. Conforme argumenta Haesbaert (2020),
“defender nosso corpo-terra-território é, assim, defender nosso ser,”
estabelecendo uma relação indissociável entre existência corporal e espacialidade. Essa ideia dialoga com o que Michel Foucault chamou de “corpo-política do conhecimento” — a noção de que todo saber é produzido por corpos situados, atravessados por tensões sociais e lutas concretas.
Na arte, essa perspectiva se manifesta quando o corpo deixa de ser apenas representado e passa a ser o próprio campo de criação: superfície de inscrição, palco de resistência e território de memória. Ao inscrever histórias sobre a pele, artistas tornam visível o que muitas vezes é silenciado — revelando o corpo como espaço onde o biológico e o simbólico, o íntimo e o político, se encontram e se confrontam.
Corpos em Movimento: A Performance como Linguagem
Na arte da performance, o corpo deixa de ser apenas matéria: torna-se verbo.
Cada gesto, respiração ou silêncio passa a significar — o corpo se move e, ao mover-se, cria mundos. A performance é talvez o território onde essa fusão entre corpo e narrativa se manifesta de forma mais intensa. Nela, o artista se coloca em risco, desafiando limites físicos, emocionais e simbólicos para transformar a própria existência em linguagem.
Poucas artistas expressaram essa dimensão de maneira tão radical quanto Marina Abramović.
Em “Rhythm 0” (1974), ela colocou-se como objeto passivo diante do público, oferecendo 72 instrumentos — entre eles uma rosa, uma faca e uma arma carregada — para que cada pessoa fizesse o que desejasse com seu corpo. Durante seis horas, Abramović experimentou o corpo como território vulnerável, aberto à violência e ao cuidado. A performance revelou o quanto o corpo pode ser colonizado, violado ou protegido conforme as forças que o atravessam — e o quanto ele, mesmo em silêncio, pode gritar.
Nesse gesto, o corpo se torna campo de poder e de empatia, espelho das relações sociais que definem o humano.
Não apenas nos Olhos…
No Brasil, Lygia Clark também deslocou o corpo do lugar da representação para o da experiência. Em suas obras dos anos 1970 e 1980, especialmente a série “Objetos Relacionais”, ela criou dispositivos sensoriais que convidavam o participante a redescobrir o corpo como espaço de cura e autoconhecimento.
Para Clark, a arte deixava de estar apenas nos olhos: passava a pulsar na pele, no toque, na respiração. O corpo, antes observado, agora era vivido — um território de transformação compartilhada entre artista e espectador.
Sua pesquisa abriu caminhos para compreender o corpo não como imagem, mas como processo de presença, uma ponte entre arte, vida e psique.
Conheça mais sobre a Obra de Lygia Clark.
A performance, portanto, é movimento e resistência.
É através dela que o corpo reivindica sua autonomia contra as tentativas de captura — seja pela estética, pela moral ou pela política.
Cada ato performático é uma forma de reinscrever o corpo no espaço público, de afirmar que ele é um território em constante reconfiguração.
Nessa geografia viva, o corpo não apenas representa ideias: ele as encarna.
Corpo Ancestral: Terra, Memória e Resistência
Para os povos indígenas, o corpo nunca foi separado da terra.
Ele é extensão do território, um mapa vivo onde se inscrevem linhagens, histórias e cosmologias. Cada traço de urucum, cada pintura com jenipapo é uma escrita sagrada — uma forma de narrar o mundo e de reafirmar a presença diante das tentativas de apagamento.
O corpo, nesse contexto, é morada e manifesto, memória e futuro.
Quando artistas indígenas contemporâneos retomam essa dimensão ancestral, eles não estão apenas criando obras: estão reativando saberes e reposicionando o corpo no centro da resistência cultural e política.
O gesto artístico torna-se também um gesto de sobrevivência.
Um dos nomes mais potentes dessa vertente é Denilson Baniwa.
Em “Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de São Paulo” (2018), ele percorreu os espaços expositivos com o rosto pintado como uma onça, “hackeando” simbolicamente o território institucional da arte. Sua presença corporal, marcada pela pintura ritual, rasgou o tecido da invisibilidade e inseriu nele a força da ancestralidade.
O corpo de Baniwa, híbrido entre o humano e o mítico, é um território insurgente — um manifesto vivo contra a colonização do olhar.
Conheça a história de “Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de São Paulo” no vídeo abaixo:
Metamorfose Contínua
Outro exemplo essencial é o do artista makuxi Jaider Esbell (1979–2021), cuja obra expandiu a ideia de corpo para incluir o espiritual e o cósmico. Em sua poética de transmutação — visível em séries como TransMakunaima (2016) — Esbell encena o corpo como um espaço em metamorfose contínua, onde convivem múltiplos seres e tempos.
Veja entrevista de Jaider Esbell sobre sua obra no vídeo a seguir:
Para ele, o corpo indígena carrega não apenas as marcas da colonização, mas também a potência dos saberes que resistem a ela.
Ao performar o corpo como território, Esbell nos lembra que resistir é também reexistir — continuar a habitar o mundo de outros modos, com outras lógicas e linguagens.
Como expressa Dorotéa Gómez Grijalva (2020):
“Meu corpo é meu território político, onde primeiro se manifestam as lutas, as resistências, as conquistas e as derrotas.”
Essas manifestações revelam que o corpo indígena, longe de ser símbolo do passado, é um espaço de presente expandido — onde se articulam memória, espiritualidade e política.
Em suas peles, danças e rituais, o território se move; a terra respira através da carne; e a arte se transforma em linguagem de pertencimento e de liberdade.
Pele como Página: Intervenções e Escritas do Corpo
As modificações corporais – tatuagens, escarificações, piercings – constituem formas ancestrais de transformar o corpo em território narrativo. Nas sociedades contemporâneas, estas práticas foram ressignificadas como expressões de identidade, resistência e pertencimento.
A artista francesa ORLAN utilizou cirurgias plásticas como performances artísticas, transformando seu rosto e corpo de acordo com padrões de beleza de diferentes épocas e culturas. Em sua série “The Reincarnation of Saint ORLAN” (1990-1993), ela documentou nove cirurgias que modificaram seu rosto, questionando os limites entre medicina, arte e controle social sobre os corpos.
Tatuagens Ritualísticas
Em diversas culturas tradicionais, as tatuagens não são apenas decorativas, mas marcam passagens importantes na vida do indivíduo e sua posição na comunidade. Os Maori da Nova Zelândia utilizam o ta moko (tatuagem facial) como um registro genealógico e de status social, transformando o rosto em um mapa de identidade e pertencimento.
Tatuagens Contemporâneas
Na sociedade atual, as tatuagens frequentemente narram histórias pessoais de superação, transformação e resistência. Muitas pessoas que passaram por doenças graves, como câncer, utilizam tatuagens para ressignificar cicatrizes e transformar marcas de sofrimento em símbolos de força e renascimento.
Corpos em Luta: A Política da Presença
O corpo como território político manifesta-se de forma contundente em performances e intervenções que denunciam opressões e violências. Artistas utilizam seus corpos como plataformas de visibilidade para questões sociais urgentes, transformando experiências pessoais em manifestos coletivos.
Regina José Galindo, artista guatemalteca, realiza performances que denunciam a violência contra mulheres e povos indígenas.
Em “¿Quién puede borrar las huellas?” (2003), Galindo caminhou pelas ruas da Cidade da Guatemala com os pés mergulhados em sangue humano, deixando pegadas vermelhas do Tribunal Constitucional até o Palácio Nacional. Seu corpo tornou-se um território de memória, denunciando os massacres perpetrados durante a guerra civil guatemalteca.
No Brasil, a artista Priscila Rezende (veja entrevista a seguir) aborda questões raciais em performances como “Bombril” (2010), onde esfrega a própria cabeça contra panelas durante horas, denunciando o racismo estrutural que compara cabelos crespos a palhas de aço. Seu corpo-território expõe as violências cotidianas sofridas por corpos negros e questiona estereótipos racistas profundamente enraizados na sociedade brasileira.
“Quando ‘corporificamos’ o território não é porque, antropomorficamente, o concebemos a partir da indissociabilidade corpo-mente, mas também porque estendemos essa propriedade corpórea a todos os demais fenômenos geográficos.” (Haesbaert, 2021)
O Corpo Digital: Novos Territórios Narrativos
A era digital trouxe novas possibilidades para o corpo como território narrativo. Artistas exploram realidade virtual, inteligência artificial e biotecnologia para criar obras que questionam os limites entre corpo físico e digital, natural e artificial.
Stelarc, artista australiano, investiga as possibilidades de extensão do corpo através da tecnologia. Em “Ear on Arm” (2006-2011), implantou cirurgicamente uma orelha em seu antebraço, equipada com um microfone e transmissor wireless, transformando seu corpo em uma interface de comunicação expandida. Seu trabalho questiona as fronteiras do corpo humano e sua integração com sistemas tecnológicos.
A artista brasileira Giselle Beiguelman explora em suas obras as relações entre corpos, espaços urbanos e tecnologias digitais. Em “Poetrica” (2003), ela criou um sistema que transformava mensagens de texto em códigos visuais, projetados em painéis eletrônicos pela cidade de São Paulo. O projeto estabeleceu novos territórios narrativos entre o corpo, a cidade e o espaço digital.

Avatares
Representações digitais que expandem as possibilidades narrativas do corpo para além de suas limitações físicas, permitindo experimentações de identidade e corporalidade.
Biohacking
Práticas que modificam o corpo com tecnologias implantáveis, transformando-o em uma interface entre o biológico e o digital, um território híbrido de experimentação.
Performance Virtual
Manifestações artísticas que utilizam ambientes virtuais para criar experiências corporais impossíveis no mundo físico, expandindo as fronteiras do corpo-território.
Pensar com o Corpo: Biopolítica e Existência
As manifestações artísticas que exploram o corpo como território narrativo dialogam diretamente com conceitos filosóficos como biopolítica, corporeidade e memória cultural. Estas obras não apenas representam ideias abstratas, mas incorporam e materializam tensões teóricas fundamentais.
O conceito foucaultiano de biopolítica – o controle e regulação dos corpos por sistemas de poder – encontra expressão em obras que denunciam a normalização e disciplinamento corporal. Quando artistas como ORLAN ou Stelarc modificam seus corpos, eles não apenas criam obras de arte, mas desafiam ativamente os regimes biopolíticos que determinam quais corpos são aceitáveis e quais devem ser controlados.
A fenomenologia de Merleau-Ponty, com sua ênfase na experiência vivida do corpo, ressoa em performances que privilegiam a presença corporal e a interação sensorial. Artistas como Lygia Clark, ao criarem experiências que envolvem o corpo do espectador, materializam a ideia de que conhecemos o mundo primeiramente através de nossa existência corpórea.
“Um poder ‘corporificado’ é, portanto, obrigatoriamente, também, um poder territorializado. Relacionalmente conjugados, tanto as relações sociais de poder fazem/constituem territórios como os territórios compõem/produzem as relações de poder.” (Haesbaert, 2021)
A memória cultural, por sua vez, manifesta-se em obras que utilizam o corpo como arquivo de experiências coletivas. Quando artistas indígenas incorporam pinturas corporais tradicionais em performances contemporâneas, eles ativam memórias ancestrais e as projetam no presente, criando um território temporal que conecta passado e futuro.
Epílogo: O Corpo como Fronteira do Possível
As manifestações artísticas que transformam o corpo em território narrativo revelam a potência deste encontro entre materialidade corporal e produção de significados. Ao utilizar o corpo como suporte, meio e mensagem, artistas não apenas criam obras, mas também expandem as possibilidades de existência e resistência.
O corpo-território emerge, assim, como um campo de experimentação onde se inscrevem histórias pessoais e coletivas, onde se manifestam tensões sociais e políticas. Mais que um tema ou suporte artístico, o corpo como território narrativo constitui uma uma forma de conhecer e intervir no mundo que habita.

As obras analisadas neste artigo demonstram como artistas de diferentes contextos culturais e históricos têm explorado esta potência do corpo-território, criando linguagens visuais e performativas que desafiam convenções e abrem novos caminhos para a expressão artística.
Ao transformar seus corpos em territórios narrativos, estes artistas não apenas produzem arte, mas também reescrevem as possibilidades do que significa habitar um corpo no mundo contemporâneo.




