Há artistas que não apenas compõem canções, mas constroem geografias do sentimento. Lô Borges foi um desses raros criadores. Sua música não se limitava a ecoar Minas Gerais; ela expandia o território do sensível, abrindo janelas para um Brasil que sonha. Com sua morte, em 2 de novembro de 2025, em Belo Horizonte, perdemos mais do que um músico — perdemos uma forma de escutar o mundo.
Entre Montanhas e Acordes: o Nascimento de um Imaginário
Salomão Borges Filho nasceu em 1952, no bairro Santa Tereza, coração boêmio de Belo Horizonte. Aquele espaço, feito de ladeiras, esquinas e violões nas janelas, transformou-se em metáfora viva de tudo o que viria depois. A “esquina” não era apenas um lugar físico: era uma ideia de encontro, um cruzamento de sons e afetos. Quando Lô, Milton Nascimento, Beto Guedes e companhia começaram a tocar, algo invisível se formava — um pacto entre o popular e o transcendente.
Na leitura semiótica, poderíamos dizer que Lô Borges fundou um mito sonoro da delicadeza. Cada acorde seu trazia o signo de um país interior: as montanhas, a bruma, o silêncio, o trem. Ele fez da paisagem mineira um idioma universal. Sua música não fala de Minas; ela fala como Minas.
O Gesto Poético da Simplicidade
Em 1972, o mundo ouviu aquele menino de vinte anos dividir com Milton Nascimento o mítico Clube da Esquina. O disco é, até hoje, uma das sínteses mais poderosas da arte brasileira: rock, jazz, MPB e espiritualidade se entrelaçam como se fossem extensões de um mesmo respiro. No mesmo ano, Lô lançaria seu primeiro álbum solo, o chamado “Disco do Tênis” — título não oficial, mas eternizado pela capa de um par de tênis abandonado na calçada.
Esse tênis é um signo perfeito para entender o artista: o passo simples, o andar despretensioso, a juventude que caminha sem pressa. Lô transformou o banal em epifania. Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e O Trem Azul são mais do que canções — são símbolos da passagem, da espera, da eternidade possível nas pequenas coisas.
“O trem que leva o tempo / o tempo que traz o trem.”
Nessa circularidade, há algo de sagrado. O tempo não é cronológico, é afetivo. O trem que parte e volta é o mesmo trem que conduz o ouvinte à infância, à origem, à lembrança de um país que ainda podia se emocionar com a beleza.
O Som como Forma de Transcendência
Lô Borges praticava uma espiritualidade sem dogma. Sua fé estava nas harmonias suspensas, na melodia que não termina, na pausa que respira. O Clube da Esquina, nesse sentido, foi mais que um movimento musical: foi uma corrente estética de transcendência. A canção mineira, como ele a concebeu, é o lugar onde o humano e o divino se encontram num mesmo acorde.
Para a semiótica, essa fusão se expressa por meio daquilo que Roland Barthes chamaria de “prazer do texto”: a fruição do som como espaço de leitura. Escutar Lô Borges é ler o silêncio. É participar de um rito de comunhão em que a palavra “janela” não nomeia um objeto, mas a própria ideia de ver o mundo com ternura.
O Menino e o Mito
Com o passar das décadas, Lô nunca perdeu esse olhar inaugural. Continuou a compor, a se reinventar, a gravar discos em que o sonho persistia como resistência. Sua carreira foi discreta, quase tímida — mas de uma coerência poética admirável. Enquanto a indústria da música se acelerava, ele mantinha o compasso das nuvens.
Na cultura brasileira, Lô Borges ocupa o espaço simbólico do artista da autenticidade: aquele que não se curva ao mercado, que permanece fiel ao mistério. Sua figura, sempre de voz suave e olhar de menino, tornou-se um arquétipo do “mineiro universal”. O mesmo arquétipo que Guimarães Rosa construiu na literatura e Milton Nascimento no canto — o homem que diz o infinito com voz baixa.
Há, em suas canções, uma pedagogia do sensível. O ouvinte aprende a desacelerar, a perceber o invisível, a encontrar o extraordinário no cotidiano. Essa é a herança mais preciosa de Lô Borges: ensinar que a beleza é uma forma de sabedoria.
O Símbolo do Trem: Deslocamento e Permanência
Se quisermos compreender o sentido profundo de sua obra, basta observar o signo recorrente do trem. Ele aparece em várias canções — sempre como metáfora do tempo, da viagem interior, do movimento que é também permanência. O trem mineiro de Lô não transporta passageiros; transporta memórias.
Esse trem é o mesmo que atravessa a cultura brasileira desde Villa-Lobos até Milton Nascimento: o som do deslocamento, da travessia. Mas em Lô Borges ele ganha uma nuance rara — a ternura. O deslocamento não é dor; é descoberta. O ruído dos trilhos é também canção de ninar.
Silêncio e Eternidade
O falecimento de Lô Borges encerra um ciclo simbólico. O menino da esquina volta à esquina de onde nunca saiu. No imaginário nacional, sua morte marca o instante em que o trem azul atravessa definitivamente o horizonte — não como fim, mas como passagem.
A morte, aqui, não é ausência. É eco. O que permanece é o timbre da voz, a doçura das melodias, a ideia de que a música pode ser um gesto ético de delicadeza num mundo cada vez mais ruidoso. Lô Borges nos deixa o mapa da escuta: um convite a permanecer sensível.
“Não se vive sem sonho, nem se sonha sem canção.”
Essa frase, que nunca disse literalmente, resume sua trajetória. Em cada nota, um modo de sonhar o Brasil — sem retórica, sem violência, com lirismo e coragem. Sua arte foi o antídoto contra o cinismo.
O Eco que Fica
Hoje, ao revisitar suas músicas, compreendemos que Lô Borges falava a língua do futuro: uma música que transcende categorias e fronteiras. É o mesmo espírito que faz do Clube da Esquina um símbolo de liberdade estética e humana. E é por isso que sua morte não fecha uma história; apenas a amplia.
No contexto do Mensagem e Movimento, sua trajetória nos lembra que toda obra de arte é uma forma de movimento — e toda melodia é uma mensagem que resiste ao tempo. Lô Borges foi, e será sempre, o artista que transformou o silêncio em música e a música em gesto de amor.
Três músicas para revisitar
- “O Trem Azul” — a viagem interior como metáfora da vida.
- “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo” — o amor como luz que atravessa o tempo.
- “Paisagem da Janela” — o olhar que aprende a ver poesia no comum.





