Entre rampas modernistas e bússolas quebradas, a 36ª Bienal de São Paulo propõe uma jornada interior. Um olhar sobre a arte como prática do humano em tempos de colapso.
Nem todo viandante anda estradas. Às vezes, a travessia mais radical é a que nos prende ao chão, imobilizando-nos diante do abismo que carregamos dentro.
A 36ª Bienal de São Paulo, sob o título “se todo viandante anda estradas, nem todo viandante anda estradas”, não é um mero evento de arte; é uma interrogação corpórea sobre o que significa habitar um mundo em colapso.
Ela desloca a metáfora do andarilho, figura central da modernidade, e a subverte. Aqui, o caminhar não se mede em quilômetros, mas em profundidade. A proposta curatorial de Manuel Borja-Villel e sua equipe não nos guia por uma narrativa linear, mas nos convida a uma prática da humanidade – um fazer-se e refazer-se constante, onde a própria arte é o território a ser palmilhado com os pés da atenção.
O pavilhão modernista de Oscar Niemeyer, por si só um ícone do caminho progressista do século XX, torna-se a cena para uma arqueologia do presente. A pergunta que ecoa nas salas não é “para onde vamos?”, mas “onde, de fato, estamos?”. Esta Bienal não oferece mapas. Ela oferece bússolas quebradas, para que aprendamos a navegar pelos astros internos.

Contexto: A Bienal como Fenômeno e Palimpsesto
A 36ª edição da Bienal, inaugurada em setembro de 2025, opera sob a curadoria do espanhol Manuel Borja-Villel, conhecido por sua abordagem museal descolonial. O tema, inspirado em um verso do poeta mineiro Guimarães Rosa, funciona menos como um slogan e mais como um axioma poético. Ele instaura uma lógica do paradoxo, desafiando a noção ocidental de progresso como deslocamento linear.
O Pavilhão da Bienal, obra-prima modernista de Oscar Niemeyer, é o primeiro signo a ser ressignificado. Suas rampas fluidas e sua fé no futuro são confrontadas por obras que falam de fadiga, ruína e reconstrução íntima. O edifício não é um mero contêiner, mas um corpo em diálogo tenso com os corpos que abriga. Sua arquitetura, outrora um manifesto de um futuro radiante, torna-se o palco para interrogar esse próprio futuro.
O Corpo como Território Primeiro
A viagem proposta aqui começa no organismo. Vemos corpos que são mapas, corpos que são arquivos de violência, corpos que celebram a pura presença. Uma performance que se estende por dias, um vídeo que examina um gesto repetido até a exaustão, uma escultura que é vestígio de uma ação física.
A estética não está a serviço do espetáculo, mas da presença testemunhal. A câmera treme, o foco falha, o som embola. São “erros” que não são acidentes, mas signos de um real que resiste à perfeição digital. A forma, nestes trabalhos, é inseparável do conteúdo: a materialidade do corpo e de sua fadiga.

A Desconstrução do Itinerário: Labirintos e Derivas
A exposição nega o percurso óbvio. Salas se abrem para becos, instalações sonoras criam barreiras invisíveis, obras exigem que o espectador as contorne, descobrindo ângulos inesperados. O visitante é forçado a abandonar a posição de sujeito soberano do olhar e se torna um flâneur desorientado.
Esta é uma estratégia semiótica poderosa. Ao quebrar a narrativa espacial linear, a curadoria replica a experiência contemporânea do mundo: um emaranhado de informações, afetos e histórias sem um centro claro. O labirinto não é uma armadilha, mas um convite a um novo modo de perceber, onde se chega a um lugar não por ter seguido uma seta, mas por ter se perdido o suficiente para encontrá-lo.

O próprio site oficial da Bienal — 36.bienal.org.br — espelha essa lógica de deriva. Bonito, denso, e deliberadamente não linear, ele convida o visitante a se perder entre imagens e fragmentos, como quem caminha por dentro de uma obra em movimento.
O Tempo como Matéria-Prima, não como Eixo
Em oposição ao tempo acelerado das redes sociais e do capital, a Bienal ergue um monumento à lentidão. Há vídeos de longa duração, tecidos feitos à mão, processos que mostram sua própria gênese. O tempo aqui não flui; ele se acumula, pesa, cristaliza-se.
Esta abordagem estética é uma reflexão filosófica sobre a historicidade. Ela sugere que o passado não é uma linha para trás, mas uma camada subterrânea que constantemente irrompe no presente. A obra de arte deixa de ser um objeto terminado e se torna um campo de força temporal, desafiando nossa relação utilitária com a duração.

Reflexão Estético-Filosófica: A Política da Quietude
O que significa, num mundo que celebra a hiperatividade, a produtividade e o nomadismo digital, escolher a quietude? A prática do “não-andar” proposta pela Bienal é um ato profundamente político. É uma greve do sentido, uma recusa em participar da corrida por significados pré-fabricados.
Esta imobilidade do viandante não é passividade. É uma potência. Como ensinou Barthes, o que fala não é apenas o que é dito, mas o que é retido. O silêncio, a pausa, o gesto contido, são signos carregados de uma força crítica avassaladora. A Bienal, neste sentido, não é um espetáculo para ser consumido, mas um espaço para ser habitado, ainda que brevemente. Ela transforma o pavilhão em um claustro laico, onde a ascese é a atenção.
Conclusão: A Estrada Interior
A 36ª Bienal de São Paulo não será lembrada por revelar um grande nome ou por uma obra-prima singular. Seu legado é mais sutil e, talvez, mais duradouro: ela nos devolve a nós mesmos. Ela falha como entretenimento e triunfa como experiência ética.
A estrada que ela traça não leva a lugar nenhum, exceto ao centro de nossa própria humanidade, frágil e complexa. O viandante imóvel compreende, ao final do percurso, que as únicas estradas que verdadeiramente importam são as que abrimos dentro de nós, à força de pausa e de escuta. Ela não entrega respostas, mas aprofunda as perguntas necessárias. E, nesse gesto, cumpre a mais alta função da arte.
Por Que Ir (ou Não) à 36ª Bienal
Evite se sua expectativa é por uma feira de novidades, um desfile de obras icônicas e fotogênicas para alimentar um feed. Ela se recusa a ser espetáculo. É uma exposição densa, por vezes deliberadamente árida, que rejeita a sedução fácil. Quem busca um entretenimento cultural, um produto de consumo estético, sairá esgotado e decepcionado. Ela não agrada; provoca.
Vá se você busca na arte não uma confirmação, mas um abalo. Se está disposto a trocar o conforto da narrativa pelo desconforto produtivo do fragmento. Se aceita que uma experiência estética pode ser, antes de tudo, uma fadiga física e mental que, paradoxalmente, revitaliza a percepção. Esta Bienal é um antídoto contra a velocidade vazia; ela exige tempo, entrega e uma rara coragem para não saber para onde se está indo.
No fim, a decisão de ir ou não repousa sobre uma única questão: você está preparado para deixar de ser um espectador e se tornar um viandante do seu próprio interior? A resposta, seja ela qual for, já é o primeiro passo da jornada.

🜙 Saiba mais
36ª Bienal de São Paulo
📍 Local: Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque Ibirapuera — São Paulo
🗓️ Período: 6 de setembro de 2025 a 11 de janeiro de 2026
🎨 Curadoria: Manuel Borja-Villel e equipe curatorial da Fundação Bienal
🌐 Site oficial: 36.bienal.org.br