A humanidade sempre repetiu seus mitos de origem.
Hoje, ensaia freneticamente o de seu fim.
No coração da Amazônia, Belém não é mais um porto de entrada para conquistadores, mas um palco erguido para a última e mais grandiosa produção teatral da espécie: a encenação de sua própria redenção. A COP30, marcada para 2025, é muito mais que uma cúpula climática; é um ritual semiótico complexo onde o apocalipse climático e a promessa de redenção verde se enfrentam numa arena de símbolos.
Enquanto os dados científicos apontam para o colapso, a narrativa persiste em tecer um novo Éden — um jardim meticulosamente coreografado onde líderes mundiais performam o papel de Adão e Eva pós-modernos, provando não a maçã do conhecimento, mas o fruto amargo de sua própria culpa. Este evento não negocia apenas emissões; negocia significados, esperanças e a própria mitologia do futuro.
Belém: Do Paraíso Perdido ao Paraíso Reposto
A escolha do lugar não é acidental; é a primeira e mais poderosa afirmação simbólica. Belém do Pará, cujo nome evoca a cidade bíblica do nascimento, é agora resignificada como a cidade do renascimento. Este é o território onde o projeto colonial europeu, em sua busca por um Éden literal de ouro e especiarias, encontrou sua própria falência moral. Agora, a mesma geografia é consagrada como santuário da expiação global.
O rio que outrora levou navios de conquista agora recebe as arcas de Noé da diplomacia internacional. A cidade torna-se um palimpsesto histórico, onde uma nova narrativa de salvação é escrita sobre os vestígios da destruição.
A Metáfora do Éden: Uma Análise Semiótica

A estrutura narrativa da cúpula é uma releitura secular do mito do Jardim. A Amazônia desempenha o papel do jardim primordial, um espaço supostamente intocado e puro. A ciência do clima assume a função do divino, ditando os mandamentos incontestáveis – os relatórios do IPCC como novas tábuas da lei. O acordo climático é a promessa de um novo pacto: a possibilidade de permanecer no Paraíso sem ser expulso.
Nesse esquema, o pecado original é a emissão de carbono, e a serpente é a própria lógica industrial e extrativista que seduziu a humanidade. A linguagem visual será saturada de verde — um verde que não é a cor da floresta viva e complexa, mas uma simulação estética da pureza.
A Cenografia do Poder Verde: Arquitetura e Espaço
A estética da sustentabilidade será o verniz que recobrirá toda a encenação. Pavilhões de bambu e estruturas efêmeras de baixo carbono não são apenas soluções de engenharia; são signos de virtude. Essa arquitetura performa uma simplicidade reconciliada com a natureza, um contraponto direto aos arranha-céus de vidro e aço que representam o epicentro da crise.
O espaço físico da cúpula será um simulacro do futuro desejado: uma bolha onde o mundo já se curou. Cada painel solar, cada copo de fibra natural, é um significante que aponta para um único significado — “estamos do lado certo da história”. A forma, aqui, é o conteúdo mais eloquente.

O Mito Verde na Cultura Pop
O imaginário que permeia a COP30 já se expressa há décadas no cinema e na música. Em Avatar (2009), o planeta Pandora é o Éden ferido que se vinga de seus invasores. Em Don’t Look Up (2021), o apocalipse climático é uma farsa mediática. Interestelar (2014) transforma a salvação humana em êxodo e expiação. Até séries como The Last of Us reencenam a purificação através da ruína.
A cultura pop tornou-se a liturgia estética do colapso: quanto mais o mundo real arde, mais sonhamos com a restauração simbólica. A COP30 não escapa a essa gramática; ela é, de certa forma, o episódio mais caro e performático dessa saga planetária.

A Linguagem da Urgência e da Esperança: O Discurso como Ritual
A comunicação oficial operará numa dialética coreografada entre o tom apocalíptico e o triunfalista. Termos como “ponto de não retorno“, “crise existencial” e “última chance” criarão a tensão dramática necessária, imediatamente contrabalançados por “oportunidade verde“, “nova economia“ e “futuro resiliente“.
Esse jogo linguístico não serve para informar, mas para gerir emoções. São mantras pós-modernos que, repetidos até a exaustão, esvaziam-se de sentido concreto e tornam-se signos vazios — prontos para serem preenchidos por qualquer promessa vaga. A fala, neste contexto, não é transparente; é um ritual que exorciza a culpa através de sua própria encenação.
O Espectro do Apocalipse: A Presença do que Não é Dito
O verdadeiro protagonista da COP30 será aquele que permanecerá invisível nos discursos oficiais: o fracasso material. Enquanto os delegados negociam porcentagens e prazos distantes, o colapso ecossistêmico, a sexta extinção em massa e o sofrimento humano das fronteiras climáticas são o monstro fora de cena.
Essa ausência palpável é o que confere urgência ao teatro. A ameaça real é tão avassaladora que precisa ser filtrada, traduzida em gráficos e jargão técnico para se tornar administrável. O apocalipse é, assim, domesticado pela semiótica — transformado de um horror indizível em um item de agenda.
Reflexão Filosófica: A Busca por um Novo Mito
Essa insistência na narrativa edênica revela uma nostalgia do absoluto em um mundo pós-metafísico. Diante do vazio deixado pelas grandes narrativas religiosas, a crise climática oferece uma escatologia tangível: temos um pecado (o carbono), um juízo final (o colapso) e uma possibilidade de salvação (a transição).
A COP30 é a catedral onde este novo culto é celebrado. O que está em jogo não é apenas a sobrevivência física, mas a necessidade humana profunda de acreditar que a história tem um sentido — e que a queda pode ser seguida por um reerguimento.
A pergunta que persiste é se precisamos de um novo Éden ou da coragem de habitar, finalmente, o mundo real e imperfeito que criamos.
Conclusão: Depois do Éden, o Deserto?
Quando as câmeras se desligarem e os pavilhões de bambu forem desmontados, o que restará da floresta encenada em Belém? A COP30 arrisca-se a ser o mais elaborado rito de passagem que não conduz a lugar algum: um ritual onde a catarse é simulada, a expiação é performada e o futuro é adiado mais uma vez.
Ela pode gerar a ilusão de que o ato de falar sobre o Éden é equivalente a habitá-lo. No fim, o maior perigo não é o fracasso das negociações, mas o sucesso da encenação. O risco é que saiamos do teatro acreditando que a redenção foi alcançada, quando, na realidade, estaremos mais próximos do deserto.
