O Tempo como Espelho Partido: o Envelhecer na Cultura Brasileira

O corpo como espelho da época

O tema do Enem 2025 — “Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira” — ultrapassa os limites da redação. Ele toca uma ferida simbólica: a forma como o Brasil, país obcecado pela juventude, lida com o tempo, a memória e o corpo. Envelhecer, aqui, é quase uma transgressão estética. É lembrar, em um mundo que quer esquecer.

Vivemos numa era em que o rosto humano compete com filtros, algoritmos e avatares. O corpo maduro, que carrega a biografia nas rugas, é muitas vezes visto como um ruído visual, um lembrete de algo que a cultura prefere esconder: a passagem do tempo. Mas o tempo, como todo símbolo, é também espelho — e o espelho, quando partido, revela mais do que reflete.

A juventude eterna e o medo da finitude
A juventude eterna – imagem ilustrativa

A juventude eterna e o medo da finitude

O imaginário brasileiro — da publicidade às novelas — é sustentado pelo mito da juventude eterna. “Pele firme, mente ativa, espírito jovem” tornou-se uma espécie de religião estética. As rugas, antes sinais de sabedoria, tornaram-se heresias visuais. A indústria do rejuvenescimento é hoje uma das mais lucrativas do planeta: cosméticos, cirurgias, filtros de realidade aumentada, pílulas de promessas químicas.

Mas esse culto não é apenas vaidade: é um mecanismo de negação da morte. O idoso nos lembra da finitude. E o Brasil — país que ainda não aprendeu a conviver com a própria história — prefere anestesiar o olhar. A juventude é um estado de consumo, não de consciência.

A juventude eterna - imagem ilustrativa
A juventude eterna – imagem ilustrativa

O idoso como símbolo da sabedoria negada

No mito junguiano, o velho sábio é a figura que guarda o conhecimento ancestral, o guia que aponta o caminho quando o herói se perde. Na vida real, o Brasil o transforma em estatística ou estorvo. A aposentadoria, que deveria ser o tempo da colheita, se converte em zona de esquecimento. O mercado ignora, a política negligencia e a mídia caricatura.

No entanto, é justamente o idoso quem carrega o poder simbólico de reconectar o presente com o passado. Ele é o narrador da aldeia moderna — o contador de histórias que a cidade esqueceu de ouvir. Negar o papel do idoso é cortar o fio que costura o tecido social.

O idoso como símbolo da sabedoria negada
O idoso como símbolo da sabedoria negada

A cultura da obsolescência e o esquecimento coletivo

Vivemos numa cultura em que tudo deve ser substituído: celulares, modas, ideias e até pessoas. A obsolescência não é apenas tecnológica, é existencial. O idoso é o corpo que resiste a esse ritmo, o lembrete de que há valor no tempo — e que nem tudo pode ser atualizado como um aplicativo.

As redes sociais criaram o paradoxo do eterno presente. Nelas, o passado é um incômodo e o futuro, um excesso. A sabedoria não viraliza. A lentidão não gera engajamento. Nesse contexto, envelhecer se torna um ato subversivo. Ser velho é ser resistente à pressa.

A cultura da obsolescência e o esquecimento coletivo
A cultura da obsolescência

Memória, arte e resistência

Há, porém, uma contra-narrativa pulsando. No cinema, obras como Amour (Michael Haneke) e O Pai (Florian Zeller) tratam a velhice não como declínio, mas como território de revelação. No Brasil, artistas como Fernanda Montenegro e Lima Duarte transformam o tempo em potência criativa, provando que a arte não envelhece — amadurece.

Em outro plano, o envelhecimento se torna metáfora de resistência cultural. Em um país que troca memória por velocidade, lembrar é um ato político. Cada idoso é um arquivo vivo, um museu que respira. E talvez a pergunta que devêssemos fazer não seja “como envelhecer bem”, mas “como permitir que o tempo continue falando através de nós”.

Memória, arte e resistência
Memória, arte e resistência

Conclusão: O envelhecer como forma de liberdade

O envelhecimento, visto de forma simbólica, é libertação — o fim das máscaras da performance e o retorno à essência. O Brasil precisa reaprender a ver no idoso não o peso do tempo, mas sua beleza. O tempo não é inimigo; é a linguagem através da qual a vida se escreve.

imagem ilustrativa

Ao propor o tema do envelhecimento, o Enem 2025 talvez tenha, sem querer, sugerido algo maior: a necessidade de reconectar o país com sua própria maturidade cultural. Porque uma sociedade que teme seus velhos é uma sociedade que ainda não cresceu.

Talvez você queira ver...

0 0 votos
Avalie o artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários