O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho e Wagner Moura: Memória, Fantasia e a Política do Eu

Cena de O Agente Secreto

Entre o real e o imaginário, um homem se perde nas sombras da própria mente.

A identidade é a primeira ficção que aprendemos a recitar. Um nome, uma profissão, um passado — cartões de visita de um self que acreditamos sólido. O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, desfia esse bordado com a frieza de um interrogador.

O que resta quando a persona descola da pele? Quando a memória, esse notário interior, começa a forjar suas próprias atas? O filme não é um thriller sobre um homem que pode ser um agente. É uma investigação sobre o agente que pode não ser um homem, mas um emaranhado de histórias absorvidas, desejos projetados e medos internalizados. Wagner Moura, em seu retorno ao cinema brasileiro, encarna não um herói, mas um sintoma: a crise do eu em um país onde a própria realidade parece uma conspiração.

O Real como Pano de Fundo da Ficção

Kleber Mendonça Filho situa sua narrativa em um Recife ao mesmo tempo banal e opressivo. Não é uma metrópole anônima, mas uma cidade íntima que se volta contra seu protagonista. O diretor, um arquiteto do incômodo, usa o gênero do thriller político não como fim, mas como veículo.

O filme dialoga com uma tradição paranoica do cinema, de Três Dias do Condor a A Conversação, mas a subverte. A ameaça aqui não é necessariamente uma organização externa, mas a estrutura psíquica de um homem comum, Domingos, um tradutor cuja mente pode ter sido colonizada por narrativas de espionagem.

Wagner Moura

A Máscara do Herói: O Agente como Arquétipo em Colapso

Wagner Moura constrói Domingos a partir de uma fisicalidade contraditória. Seu corpo não é o de um espião clássico; é um corpo que se esforça para parecer um. A postura, o olhar vigilante, a contenção dos gestos — tudo é performance. O arquétipo do agente secreto, essa figura onipotente e invisível da cultura pop, torna-se uma máscara pesada. Domingos não a veste para se esconder do mundo, mas para se encontrar. A tragédia reside no fato de que, ao vestir a máscara, o rosto por baixo começa a se dissolver. Ele não está interpretando um agente; ele está sendo interpretado por essa fantasia.

Ponte: Mas a máscara, ao colar-se à pele, reescreve também a lembrança de quem a usa — e é nesse atrito entre corpo e lembrança que o filme acende seu pavio.

Memória como Território de Conflito

O filme nos nega a segurança do flashback objetivo. Suas memórias são intrusivas, fragmentadas, duvidosas. Elas não iluminam o passado, mas obscurecem o presente.

Mendonça Filho opera uma semiótica da desconfiança: um olhar trocado na rua, um carro estacionado, um ruído no telefone. São signos que podem ser lidos como pistas de uma conspiração ou como projeções de uma mente em desarranjo. A memória, longe de ser um arquivo, é um terreno em disputa onde a fantasia cinematográfica — os filmes de espionagem que Domingos consome — luta pela primazia sobre a experiência vivida.

A pergunta não é “o que aconteceu?”, mas “que histórias eu contei a mim mesmo sobre o que aconteceu?”

A Estética da Paranoia: A Câmera que Sussurra

A linguagem visual do filme é a materialização de uma consciência paranoica. A câmera, frequentemente estática, enquadra portas, janelas, corredores — limiares por onde a ameaça pode adentrar. O plano é o rei, criando uma claustrofobia mesmo em espaços abertos.

A trilha sonora, ou melhor, o design de som, é personagem central. Os sons ambientes são amplificados, os sussurros são ininteligíveis, o silêncio é ameaçador. Tudo é potencial signo de perigo. Essa estética não serve para nos assustar com o que vemos, mas para nos fazer duvidar do nosso próprio ato de ver e ouvir. Colocados na perspectiva de Domingos, somos forçados a habitar sua incerteza.

A Política do Eu: A Nação Interior em Guerra Civil

A genialidade de O Agente Secreto está em como essa crise íntima espelha uma doença política maior. Domingos é um microcosmo de um Brasil pós-verdade, onde narrativas se chocam, a desconfiança corrói o laço social e a identidade coletiva se fragmenta. A pergunta “em quem podemos confiar?” ecoa do cenário nacional para a psique do personagem. A sua “missão” secreta, real ou imaginada, é uma alegoria da busca por um sentido e uma agência em um mundo que parece operar por lógicas obscuras. O confronto não é apenas o que vemos nas manchetes; é aquele que se trava no foro interior de cada cidadão que já se sentiu impotente diante do poder.

Reflexão Filosófica: O Self é uma Ficção Útil?

O filme nos coloca diante do abismo questionado por filósofos como David Hume: o self é apenas um feixe de percepções, sem um núcleo substancial. Domingos é a personificação desse feixe desorganizado. Sua identidade é uma colagem de papéis sociais (o tradutor, o marido), de consumos culturais (o fã de filmes de espionagem) e de traumas possíveis. Kleber Mendonça Filho parece sugerir que a sanidade não reside em descobrir um “eu” verdadeiro e essencial, mas em conseguir costurar uma narrativa coerente e funcional sobre si mesmo. O fracasso de Domingos não é não ser um agente; é falhar em ser o autor de sua própria história, tornando-se um personagem de um roteiro cujo autor ele desconhece.

Conclusão: A Missão que Nunca Existiu

O Agente Secreto não se resolve com a revelação de uma conspiração ou a descoberta de uma verdade objetiva. Seu desfecho é mais sutil e, por isso, mais devastador.

A verdadeira missão secreta, descobrimos, nunca foi sobre desvilar um complô internacional, mas sobre encontrar um self estável em um mundo líquido. É uma missão que fracassa, e é no fracasso que reside sua veracidade. O filme não oferece respostas, porque a pergunta “quem sou eu?” é a própria condição da modernidade.

Quando as luzes se apagam, talvez percebamos que o verdadeiro agente secreto sempre fomos nós — infiltrados na nossa própria consciência.

Assistir ou Não?

Assista se você busca um cinema que o trata como um intelectual adulto, capaz de habitar a ambiguidade. O Agente Secreto é uma obra-prima do incômodo, um filme que permanece na mente dias depois, como uma pergunta não respondida. É uma aula de linguagem cinematográfica, onde cada plano, cada som e cada silêncio são elementos constitutivos de um estado psicológico. Wagner Moura entrega uma atuação contida e hipnótica, um estudo minucioso do colapso interior.

Evite se você busca um thriller de espionagem convencional, com ação linear, vilões claros e um desfecho catártico. Aqui, a ação é cerebral, o vilão pode ser a própria mente e a catarse é substituída por uma reflexão ácida. O ritmo é deliberadamente lento, um slow burn que pode frustrar expectativas de entretenimento puro. É um filme para ser decifrado, não apenas consumido.

Talvez você queira ver...

0 0 votos
Avalie o artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários