Os Vampiros Mais Estranhos do Cinema: Uma Dança, Um Drink e Uma Caçada

A Dança dos Vampiros

O vampiro não morreu.
Foi demitido.

Não por falta de fome — ele ainda sente o cheiro do pescoço, ainda conta os batimentos como quem conta moedas — mas porque o gesto perdeu seu peso sagrado. A mordida já não é pecado, nem sedução, nem tragédia: é um hábito mal mantido, como fumar no banheiro de um posto de gasolina às três da manhã.

O imaginário vampírico, outrora sustentado por silêncios carregados e olhares que atravessavam séculos, rachou.
E pela fenda não entrou apenas o ridículo — mas também o burocrático e o banal. Não como acidente, mas como diagnóstico.

O vampiro, agora, habita motéis com carpete manchado, igrejas convertidas em QGs de operações táticas, salões de baile onde ninguém dança direito. Ele não assombra. Ele sobrevive — e essa é a forma mais cruel de decadência: não ser temido, mas tolerado.

Este ensaio trata de três filmes que não quebram o mito do vampiro. Eles apenas partem do pressuposto de que ele já está quebrado — e filmam seus estilhaços com uma mistura de ternura e desprezo.

O Fim do Vampiro Romântico — e o Começo do Vampiro Como Inquilino de A Dança dos Vampiros

Até os anos 1960, o vampiro ainda podia se dar ao luxo da melancolia.
Drácula, em suas encarnações clássicas — desde Murnau até Lee —, era um aristocrata do medo: seu poder residia não apenas na força, mas na distância. Ele não invadia; era convidado. Não mordia; seduzia. Seu corpo era intocado pelo tempo — e, justamente por isso, expunha a fragilidade do corpo humano, sua carne efêmera, seu sangue que escorre e seca.

Mas o pós-guerra dissolveu hierarquias, inclusive as do horror.
A modernidade avançou com aspiradores de pó, refrigeradores e televisão em preto e branco — e o sobrenatural teve de aprender a conviver com o ruído de fundo do cotidiano. O gótico, outrora arquitetura do desejo reprimido, virou cenário de parque temático. O vampiro, então, enfrentou seu primeiro exílio: não mais perseguido por caçadores, mas ignorado pela própria cultura que o inventara.

É nesse clima que Roman Polanski filma A Dança dos Vampiros (The Fearless Vampire Killers, 1967) — não como paródia, mas como elegia travestida de comédia.

Um Castelo Que Já Não Assusta — Apenas Congela

Dirigido por Roman Polanski e escrito em parceria com Gérard Brach, A Dança dos Vampiros (1967) apresenta Polanski como o aprendiz atrapalhado Alfred, Jack MacGowran como o Professor Abronsius, Sharon Tate como Sarah e Ferdy Mayne como o Conde von Krolock.
A versão americana, mutilada e renomeada The Fearless Vampire Killers (Os Assassinos de Vampiros Destemidos), carrega uma ironia involuntária: ninguém ali é “destemido” — e quase ninguém mata vampiros.

A Dança dos Vampiros
A Dança dos Vampiros

A ação se passa em um vilarejo transilvano onde o inverno não é metáfora: é condição física. A neve não encobre o perigo — ela o retarda, o empana, o torna ridículo. O castelo do Conde von Krolock não paira sobre um penhasco; está enterrado em montanhas de gelo, com janelas empoeiradas e corredores que cheiram a mofo e sopa esquecida.

Von Krolock não é sedutor — é esnobe. Usa luvas brancas não por elegância, mas por aversão ao contato. Sua voz é suave, mas sua ironia é ácida: “Temos de tudo — exceto bom gosto”, diz, ao mostrar sua biblioteca. Ele não quer dominar o mundo. Quer que o mundo reconheça sua superioridade estética — e essa é a tragédia mais moderna: o monstro reduzido a crítico de arte.

A semiótica aqui é de desmontagem.

O espelho — símbolo clássico da ausência vampírica — aparece, mas sem reivindicar seu significado tradicional. Apenas existe, como se o filme recusasse o mito e deixasse o objeto livre de obrigação simbólica.

A cena da dança final, onde vampiros e humanos giram juntos em um salão gelado, todos sorrindo com dentes afiados, não é apocalipse: é normalização. O horror não está na transformação; está na aceitação silenciosa dela.

Barthes diria: o signo vampírico foi esvaziado de seu sentido denotativo (morte, transgressão, desejo proibido) e agora flutua como pura conotação — um estilo de vida ligeiramente inconveniente.

O Vampiro Texano: Sangue, Cerveja e o Ritual Como Rotina em Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn, 1996)

Dirigido por Robert Rodriguez e escrito por Quentin Tarantino, Um Drink no Inferno começa como um thriller de estrada: dois irmãos fugitivos sequestram um ex-pastor e seus filhos para cruzar a fronteira com o México. Nada sugere sobrenatural — apenas poeira, culpa e tensão. Até o bar Titty Twister aparecer no horizonte.

Não há transição suave.
Não há aviso.
O gênero simplesmente quebra, como um osso estalado sob uma bota.

O bar não é infernal por design — é infernal por acúmulo: luz vermelha de neon queimada, cheiro de cerveja derramada e couro velho, música country distorcida por caixas de som furadas. É um lugar onde o sagrado já foi expulso, não por blasfêmia, mas por desuso. A cruz na parede está torta. Ninguém repara.

E então, Santanico Pandemonium entra no palco.

O Corpo Que Não Seduz — Apenas Exige

Salma Hayek, vestida de sacerdotisa pornô, dança sobre uma mesa com uma cobra. O ritual é explícito: não há sugestão, não há olhar oblíquo. O desejo é comandado, não despertado. Quando ela morde o pescoço do cliente, não há êxtase — há eficiência. O sangue jorra como gasolina em um tanque seco.

Aqui, o vampiro não é um ser, mas um sistema.
A primeira metade do filme é humano demais: hesitações, culpas, falhas de linguagem. A segunda metade é pós-humana: ninguém fala, quase ninguém pensa — todos reagem. O corpo toma o lugar da psique. A fome substitui a vontade.

A estética é tactocêntrica: o que importa não é o que se vê, mas o que se sente na pele — o calor do fogo, o cheiro de sangue coagulado, o peso do machado na mão. Rodriguez filma o horror não como visão, mas como incidente físico. Cada mordida é um acidente de trabalho.

E Tarantino, mestre do diálogo, cala suas personagens no momento exato em que elas perdem a humanidade. Seth Gecko, o mais cínico dos homens, torna-se o mais presente: ele não reflete — age. Sua arma não é metáfora; é extensão do braço. O vampiro, aqui, não representa o Outro — ele é o mesmo, levado ao extremo: o capitalismo do corpo, onde até o sangue é matéria-prima.

O título original — From Dusk Till Dawn (Do Crepúsculo ao Amanhecer) — soa como horário de expediente.

Um Drink no Inferno
Um Drink no Inferno

O Caçador Como Último Vampiro — e a Igreja Como Empresa de Extermínio em Vampiros (1998, John Carpenter)

Dirigido por John Carpenter e estrelado por James Woods, Vampiros (1998) adapta o romance de John Steakley. O elenco tem ainda Daniel Baldwin, Sheryl Lee, Thomas Ian Griffith dentre outros.

E este não é um filme sobre vampiros.
É um filme sobre aposentadoria simbólica.

Jack Crow, o caçador, não carrega uma estaca — carrega um arsenal. Rifles com pontas de prata, redes eletromagnéticas, helicópteros com GPS. Ele não reza. Ele reporta. Ao Vaticano. Que, por sua vez, não age por fé, mas por gestão de risco. O Cardeal (interpretado por Maximilian Schell) fala em “taxa de sucesso”, “recursos alocados”, “retorno espiritual sobre investimento”. A Igreja aqui não é corpo místico — é holding teológica.

O Vampiro Como Executivo do Mal

Jan Valek, o antagonista, não vive em um castelo.
Mora em um motel de luxo no Novo México — suíte com ar-condicionado, frigobar, vista para o deserto. Ele não seduz; seleciona. Suas vítimas não são escolhidas por beleza ou virtude, mas por acesso: policiais, agentes, funcionários de hotel — todos com chaves, credenciais, mobilidade. Ele não quer almas. Quer infraestrutura.

Sua transformação é reveladora: quando se alimenta, não há drama, não há luzes dramáticas. O corpo da vítima simplesmente desaba, como um saco de cimento. O sangue é sugado com eficiência clínica — quase logística. Valek não ri ao matar. Ele confirma o serviço.

A fotografia de Gary B. Kibbe — arenosa, quase seca — reforça isso: não há sombras longas, não há névoa. O sol do sudoeste americano não perdoa. O vampiro aqui não teme a luz por superstição — mas por inconveniência operacional. É um contratempo, não uma maldição.

E Jack Crow?
Ele bebe, xinga, dorme mal, odeia sua missão — mas não consegue parar. Por quê? Porque, sem o vampiro, ele não é nada. Sua identidade depende da preservação do monstro. Valek é seu espelho invertido: ambos são mercenários. Um é pago pela Igreja; o outro, pelo desejo. Ambos usam jaquetas de couro, falam pouco, matam com método.

A cena final — Crow caçando sozinho no deserto, sem reforços, sem bênçãos, sem promessa de redenção — não é triunfo. É fidelidade a um cargo extinto. Ele não acredita em Deus. Acredita em dever. E, nesse deserto, o vampiro é a única coisa que ainda confere sentido à sua violência.

Eco escreveria: “O caçador sobrevive ao mito porque ele é o último a acreditar nele — mesmo sem fé.”

Vampiros de John Carpenter
Vampiros de John Carpenter

O Vampiro Pós-Sagrado: Quando o Monstro Perde Sua Função Simbólica

O vampiro clássico era um guardião do limiar.
Ele marcava a fronteira entre vida e morte, desejo e pecado, corpo e alma. Sua existência garantia que certas linhas ainda valiam a pena ser cruzadas — ainda que à custa da alma.

Mas em A Dança dos Vampiros, Um Drink no Inferno e Vampiros, essa função simbólica entra em colapso.
Não por ausência de monstros — há vampiros em abundância —, mas por ausência de sacralidade no confronto. O rito perde sua estrutura: não há invocação, não há escolha trágica, não há queda. Há apenas continuidade. O horror não é o que acontece — é o que deixa de acontecer: o espanto.

O Imaginário Quebrado Como Diagnóstico Cultural

Esses três filmes compartilham uma estética do desgaste:
— O castelo de von Krolock está frio, não por maldição, mas por falta de manutenção.
— O bar Titty Twister não é infernal por design sobrenatural, mas por abandono humano.
— O motel de Valek não é maldito — é padrão cinco estrelas para predadores corporativos.

A linguagem visual recusa o espetáculo do sublime.
Polanski filma o vampiro como quem filma um tio excêntrico em um jantar de família. Rodriguez dissolve o gótico no suor de um bar de estrada. Carpenter enterra o mito sob a poeira de um deserto onde até Deus usa protetor solar.

O que emerge não é o niilismo — é algo mais sutil: o cansaço do sentido.
O vampiro não é destruído; é despromovido. De figura do proibido, torna-se figura do deslocado: um imigrante simbólico, sem documento, sem altar, sem cemitério que o aceite.

Benjamin diria que esses vampiros são anjos da história de costas: não olham para o futuro, nem para o passado — estão paralisados no agora sem aura, onde até a maldição perde seu brilho.

E talvez seja essa a revelação mais perturbadora:
o vampiro só pode ser ridículo quando o humano já desistiu de ser sagrado.

Quando o corpo não é templo, mas terminal.
E o sangue não é vida, mas fluido.
Quando o desejo não é transgressão, mas demanda.

Esses filmes não zombam do vampiro.
Eles lamentam — com riso, com violência, com dança — o dia em que o monstro descobriu que já não assombrava ninguém…
porque o mundo inteiro havia se tornado um pouco vampírico.

Um Drink no Inferno
Um Drink no Inferno

A Sombra Que Continua a Andar — Mesmo Sem Corpo Para Habitá-la

Três filmes. Três funerais distintos.
Nenhum deles enterra o vampiro com honras.
Enterram-no com uma cerveja morna, uma estaca enferrujada, uma risada abafada no corredor de um castelo que já não tem dono.

Um Drink no Inferno mostra que o monstro sobrevive à mudança de gênero — mas não à mudança de classe.
A Dança dos Vampiros revela que a ironia é a última defesa do condenado à eternidade: se não posso ser temido, serei, ao menos, culto.
Vampiros confirma: quando a Igreja se transforma em corporação, o caçador se torna o verdadeiro fiel — não da fé, mas da rotina do combate.

Esses vampiros não são anomalias.
São diagnósticos.

Eles surgem quando o imaginário exige uma pausa — não para descansar, mas para confessar: o símbolo falhou.
Não por incoerência, mas por excesso de uso. Como uma moeda desgastada, ainda circula — mas ninguém lê mais o que está escrito nela.

O vampiro “fora do lugar comum” é, na verdade, o vampiro no lugar certo do tempo errado.
Ele não está deslocado no espaço — está deslocado na história do sentido.
E caminha, mesmo assim. Com sede. Com tédio. E um terno surrado ou uma jaqueta de couro rachada.

Porque o mito, mesmo esvaziado, ainda lateja.
Não como verdade — mas como lembrança do corpo:
de que um dia, morder era proibido,
de que um dia, o sangue era sagrado,
de que um dia, o monstro sabia por que existia.

Vampiros de John Carpenter
Vampiros de John Carpenter

Epílogo

Eles não pedem perdão.
Não pedem sangue.
Só pedem que alguém, por um instante, finja que ainda acredita —
não neles,
mas na possibilidade do assombro.

Um drink. Uma dança. Uma estaca.
Qualquer coisa que ainda tenha gosto —
antes que o sangue, definitivamente, seque.

E nada disso diminui a força dos filmes — pelo contrário.
A Dança dos Vampiros, Um Drink no Inferno e Vampiros continuam deliciosos de assistir.
Parte do encanto deles está justamente nessa reinvenção do mito, nessa liberdade anárquica com o símbolo.
Se você ainda não viu, veja. Se já viu, reveja: a semiótica está sempre dançando nas entrelinhas.

Talvez você queira ver...

0 0 votos
Avalie o artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários