O Duelo que Nunca Aconteceu: Cliff Booth, Bruce Lee e a Crise do Herói em Hollywood

Cliff Booth e Bruce Lee em cena de Era Uma Vez em… Hollywood

Não há sangue ou golpe decisivo. Não há derrota declarada.
E ainda assim, em um corredor poeirento dos estúdios, cercado por trailers e pelo zumbido distante de produções paralelas, em Los Angeles, 1969, ocorre um dos confrontos mais violentos do cinema contemporâneo — não pela força dos corpos, mas pela força dos mitos que eles carregam.

Cliff Booth (Brad Pitt), com sua camiseta desbotada e sorriso que esconde uma biografia sangrenta, encara Bruce Lee (Mike Moh), vestido de negro, preciso como uma lâmina, falando com a certeza de quem já venceu a história. O que se desenrola ali não é uma luta, mas um ensaio de colisão: entre o Ocidente que se despede de seus cowboys e o Oriente que entra no imaginário global como nova gramática do poder. Tarantino, com sua obsessão por replays culturais, não filma um duelo — ele filma o instante antes do duelo, quando os signos ainda estão em suspensão, e o herói, pela primeira vez, hesita.

Porque, na verdade, o que se enfrenta ali não são dois homens.
É o mito que ainda acredita em si mesmo contra o homem que já deixou de acreditar nele.

A Tela como Arquivo de Fantasmas

Era Uma Vez em… Hollywood (2019) é o nono longa de Quentin Tarantino — e talvez seu mais melancólico. Lançado no cinquentenário dos assassinatos de Sharon Tate e seus amigos pela Família Manson, o filme não os reconstitui como tragédia, mas como possibilidade suspensa.

Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), astro do faroeste televisivo em queda livre, e seu dublê, Cliff Booth, vivem à margem de um sistema que já não os nomeia. O roteiro, escrito por Tarantino com obsessiva precisão histórica, reconstitui não só ruas e carros de 1969, mas o clima semiótico da virada da década: o fim da inocência hollywoodiana, o esgotamento dos gêneros clássicos, a ascensão de uma nova violência — mais caótica, menos ritualizada.

A cena com Bruce Lee foi filmada nos estúdios da Sony, no mesmo local onde, em 1972, O Show de Bruce Lee deveria ter sido gravado — projeto cancelado após sua morte prematura. Mike Moh estudou não apenas os movimentos do mestre de Jeet Kune Do, mas também as entrevistas, a entonação, o ritmo respiratório. Tarantino, em entrevistas (como à Variety, julho de 2019), afirmou ter ouvido relatos — não confirmados — de bastidores em que Lee teria desafiado dublês em lutas reais para testar sua habilidade. O diretor não busca verossimilhança documental, mas verossimilhança mítica: ele quer nos fazer acreditar, por alguns minutos, que o mito pode ser tocado. E, ao tocá-lo, quebrá-lo.

Informação não confirmada: que Bruce Lee tenha de fato desafiado dublês dessa forma. Mas isso é secundário. O que importa é que o rumor existe — e o rumor, na semiótica, é signo tão potente quanto o fato.

O Corpo como Texto em Colisão

Cliff Booth: o cowboy sem fronteira

Cliff não monta cavalos. Ele dirige um Cadillac descapotável cor de ferrugem, com cheiro de cigarro e óleo de motor. Seu corpo é largo, mas não esculpido — é o de quem trabalhou atrás da câmera, absorveu pancadas sem glória, executou gestos que outros levaram ao estrelato. Veste-se como um extra que se recusou a sair do set: camiseta branca, calça jeans surrada, óculos escuros mesmo à sombra. Não fala muito — e quando o faz, é com ironia ácida, quase autodestrutiva. É um homem que já viu o making of do mito, e sabe que, lá dentro, há suor, erro e medo.

Seu signo principal não é a bravura, mas a sobrevivência. Ele é o homo faber do cinema clássico: aquele que constrói o herói, sem jamais ser nomeado por ele. Sua decadência não é moral, mas narrativa: ele não tem mais história para contar — apenas memória.

Bruce Lee: o guerreiro como logotipo

Bruce Lee entra na cena como quem entra num frame de cartaz: postura ereta, punhos cerrados levemente à frente, olhar que não desvia. Fala rápido, com precisão quase mecânica — não para convencer, mas para afirmar. Sua roupa preta, sem adornos, é uniforme de ideia: ele não é um ator que faz artes marciais; é uma tese encarnada sobre disciplina, eficiência, supremacia do espírito sobre a matéria. Até o suor parece coreografado.

Mas há uma fissura: sua fala é excessiva. Ele precisa explicar por que é o melhor. E, no cinema, quem precisa se explicar já perdeu terreno simbólico. Barthes diria que Bruce está preso na mitologia do super-homem — um mito moderno, tecnificado, exportável. Sua força não está no golpe, mas na promessa de que o golpe será inevitável. É por isso que, quando Cliff o derruba — não com um chute, mas com um empurrão casual, quase descuidado —, o silêncio que se segue é ensurdecedor. O mito não foi quebrado com violência. Foi deslocado.

A estética do quase: ritmo, som e o vazio como forma

A cena dura menos de quatro minutos. A câmera, em plano médio contínuo, recusa cortes dramáticos. Nenhum slow motion, nenhuma trilha épica. O som ambiente — água da piscina, risos abafados, o vento — permanece intacto. Tarantino filma o duelo como se filmasse uma conversa de bastidores: banal, quase burocrática.

E é justamente essa banalidade que a torna devastadora. A violência não está no corpo, mas na ausência de ritual. Não há ringue, não há árbitro, não há regras — apenas dois homens e o peso de duas culturas cinematográficas se esbarrando. O empurrão de Cliff não é um golpe de mestre; é um gesto de cansaço. Como se dissesse: “Já vi esse filme. E sei como termina.”

O Herói Não Morre — Ele É Dublado

O que essa cena revela não é quem venceria uma luta, mas quem ainda acredita que lutar significa alguma coisa. Bruce Lee encarna uma ética do esforço: o corpo como projeto, a vitória como destino, o treino como redenção. É uma cosmologia quase religiosa — cada movimento é prece, cada músculo, dogma.

Já Cliff Booth opera numa ética pós-heroica: nada é redimido, nada é transcendente. A luta, para ele, não é caminho — é interrupção. Um desvio no caminho para o próximo uísque, o próximo favor, o próximo dia.

Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, escreveu que o herói clássico depende da aura — aquela distância que o torna inatingível, sagrado. Mas o cinema de massa dissolveu essa aura. E Tarantino, aqui, mostra o que vem depois: não o fim do herói, mas sua duplicação. Cliff é o dublê do dublê — o homem que dubla o homem que dubla o mito. Ele não quer substituir Rick Dalton. Ele já é Rick Dalton — só que sem o close, sem o crédito, sem a ilusão.

E Bruce Lee? Ele ainda crê na possibilidade de ser original. Mas, em 1969, o original já é cópia de si mesmo. Sua imagem circula em revistas, comerciais, programas de TV — antes mesmo de ele conquistar o mundo com O Dragão Chinês (1973), sua lenda já é produto. Tarantino não o desrespeita ao colocá-lo numa situação de vulnerabilidade. Pelo contrário: ele o humaniza — e, ao fazê-lo, o salva do pedestal onde o congelaram.

O duelo que nunca foi, então, é uma elegia.
Não à derrota de um homem.
Mas à perda de uma crença: a de que o corpo, sozinho, pode carregar o sentido do mundo.

O Árbitro que Não Apita

Tarantino não resolve o duelo porque não há resolução possível. O que está em jogo não é força física, mas autoridade simbólica — e essa, em 1969, já está em disputa aberta. O cinema clássico agoniza. O novo ainda não encontrou sua forma. Cliff e Bruce são dois sintomas de uma mesma crise: a do herói que, pela primeira vez, olha para o espelho e vê um ator.

A cena funciona como um microcosmo do filme inteiro: Era Uma Vez em… Hollywood não é uma homenagem à velha Hollywood. É seu velório filmado em 70mm — com direito a uísque, cigarro e trilha sonora de Simon & Garfunkel. Tarantino não reescreve a história para consolar. Ele a reescreve para perguntar: e se o mito pudesse ser poupado? Não Sharon Tate — o mito. Porque, no fim, o que ele protege não é uma pessoa, mas a possibilidade de encantamento.

O duelo que nunca foi é, portanto, o coração simbólico do filme: um gesto contido que diz mais do que qualquer explosão. Um empurrão que derruba não um homem, mas uma era.

O que Tarantino realmente está dizendo com essa cena

A cena entre Cliff Booth e Bruce Lee não é um comentário sobre quem venceria uma luta — e Tarantino deixa isso claro ao desmontar qualquer possibilidade de espetáculo. O que ele está realmente dizendo ali é que Hollywood fabrica mitos, mas também os abandona, e que o herói, para sobreviver, precisa saber que é parte dessa engrenagem.

Bruce Lee representa um mito em ascensão, ainda puro, ainda crente no poder da própria aura. Ele fala como quem acredita que o mundo se dobra à técnica, ao treinamento, ao domínio absoluto do corpo. Seu discurso é programático, quase pedagógico: ele tenta explicar a si mesmo para garantir que sua imagem permaneça intacta. Tarantino o enquadra como alguém que ainda não percebeu que, na virada para os anos 1970, ninguém mais controla a própria narrativa.

Cliff Booth, por outro lado, é um herói residual — um corpo que já serviu a um sistema que não existe mais. Ele não acredita no mito porque viu o mito ser construído por dentro, com fita adesiva, improviso e dublês como ele próprio. Sua força não está na violência, mas na consciência: Cliff sabe que nenhum golpe dito perfeito resiste ao descaso do tempo. E, quando empurra Bruce Lee contra o carro, ele não o derrota — ele o desloca do pedestal e o traz para o mesmo chão onde todos os personagens de Tarantino inevitavelmente acabam: o da humanidade imperfeita.

Ocidente versus Oriente

A cena, portanto, não é sobre desmistificar Bruce Lee. É sobre desmistificar o próprio conceito de mito. Tarantino pergunta: o que acontece quando os mitos de culturas diferentes encontram a realidade ao mesmo tempo? O resultado é um ruído, um atrito, uma zona de instabilidade. Não há vencedores — há apenas a constatação de que o cinema é o único ringue onde esses confrontos podem ser encenados sem que nenhum dos dois desapareça.

O recado final é simples, mas profundo:
no cinema, lendas não morrem. Apenas mudam de forma, de dono e de função.
Bruce Lee continua brilhando. Cliff Booth continua assombrando. Tarantino apenas suspende a aura, por alguns minutos, para que possamos enxergar o que existe antes e depois do mito: um homem, outro homem e um instante em que o tempo parece hesitar.

Por que assistir — ou não — a Era Uma Vez em… Hollywood?

Assistir ao filme não é uma questão de entretenimento, mas de arqueologia emocional. Tarantino não quer que você admire Rick Dalton ou Cliff Booth — quer que você os reconheça como parentes distantes de si mesmo: alguém que ainda ensaia discursos no espelho, que carrega um talento não reconhecido, que já perdeu o timing da própria vida. O filme é lento, deliberadamente anacrônico, quase irritantemente fiel a detalhes supérfluos — porque é assim que a memória funciona: não em clímax, mas em pausas.

Se você busca ação desenfreada, ironia fácil ou respostas claras, este não é seu filme. Mas se você suporta o peso da melancolia com elegância, se acredita que o cinema pode ser um ato de reparação simbólica, então Era Uma Vez em… Hollywood é uma das poucas obras recentes que ousa dizer: talvez ainda dê tempo de recomeçar — não a história, mas o desejo.

E se você se recusa a assistir — por considerá-lo revisionista, complacente, excessivamente nostálgico — também está certo. Porque o filme pede essa recusa. Ele não se oferece como verdade, mas como proposta de trégua. Uma trégua entre o que fomos e o que não soubemos ser. Entre o cowboy e o guerreiro. Entre o que caiu e o que ainda insiste em se levantar — mesmo que seja só para pegar outra cerveja.

Epílogo

Em um corredor poeirento dos estúdios, cercado por trailers e pelo zumbido distante de produções paralelas.
Enquanto o vento a desloca levemente, como se fosse o início de um movimento — ou o fim de outro —, vemos:
o duelo nunca terminou.
Apenas mudou de ringue.

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