Quero Ser John Malkovich – O Corredor de Sete Minutos e Meio: Sobre Corpos Alugados e a Falência do Nome Próprio

Quero Ser John Malkovich - poster

Não se entra em John Malkovich.
Entra-se através dele — como quem atravessa um espelho que não reflete, mas absorve.

O portal no teto baixo do andar 7½ não é uma passagem mágica, mas um diagnóstico clínico disfarçado de piada absurda: o sujeito contemporâneo não mais sofre de não ser reconhecido. Sofre de ser demasiado ele mesmo.

Craig Schwartz, marionetista frustrado, não quer aplausos. Quer desaparecer — não na morte, mas na performance. Quer habitar um corpo cuja voz já é narrativa, cujo rosto já é close, cujo nome já ecoa antes mesmo de ser pronunciado. Malkovich não é um homem. É uma assinatura pré-aprovada pelo mundo.

E é aí que o filme deixa de ser comédia e se torna tragédia invertida: o herói não busca sua essência. Ele a devolve, embrulhada em fita crepe, como quem devolve um produto defeituoso.

Impossível de Filmar

Lançado em 1999, Quero Ser John Malkovich (Being John Malkovich) marca a estreia de Spike Jonze na direção e consagra Charlie Kaufman como um dos roteiristas mais radicais do cinema americano. A produção, realizada pela Propaganda Films e distribuída pela USA Films, foi rodada em Nova York e Los Angeles com orçamento modesto (US$ 13 milhões), mas gerou impacto desproporcional.

Malkovich, inicialmente cético, aceitou o papel — interpretar-se como uma versão distorcida de si mesmo — após ler o roteiro e perceber que o texto não zombava dele, mas da ideia de celebridade como habitação disponível.

O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor e Melhor Atriz Coadjuvante (Catherine Keener). Informação não confirmada: há relatos de que David Bowie recusou o papel de Malkovich; o que se sabe é que o roteiro circulou por anos como “impossível de filmar”, até que Francis Ford Coppola, como produtor executivo, garantiu a liberdade criativa necessária.

O andar 7½ não existia — foi construído em estúdio —, mas tornou-se, desde então, um lugar real na geografia simbólica da cultura: onde o sujeito moderno finalmente pode se curvar, literalmente, diante da própria insignificância.

A arquitetura do desejo esmagado

O corredor escuro, estreito, inclinado, que conduz ao cérebro de Malkovich, é uma metáfora perfeita da subjetividade contemporânea: não há entrada franca, só acesso por constrangimento físico. Para ser outro, é preciso primeiro se “dobrar”. A câmera, nesses momentos, adota a subjetiva do invasor — mas não há glória nessa posse. Há claustrofobia, ruído de batimentos cardíacos, a voz do hospedeiro ecoando como um sistema operacional falhando.

O tempo como contrato de alienação

Sete minutos e meio: duração exata de um “take” médio no cinema clássico; tempo médio de uma masturbação; duração de um sonho lúcido antes do colapso. O limite temporal não é acaso — é a condição de possibilidade da experiência. Sem ele, não há desejo, há vício.

O portal só funciona como fantasia enquanto for “interrompível”. Quando Craig tenta burlar o cronômetro — prendendo Malkovich num porão para habitação contínua —, o corpo hospedeiro entra em colapso simbólico: o cérebro se rebela, o mundo se dissolve em um deserto onde só existe “John Malkovich”, repetido até o infinito. O inferno não é o outro. É o “mesmo”, sem saída.

Malkovich como signo puro

Roland Barthes diria que Malkovich, aqui, é um significante flutuante. Sua voz gutural, seus olhos oblíquos, sua postura de quem está sempre fora do quadro, tornam-se atributos dissociáveis — como ícones arrastados para uma pasta de identidade.

Quando Lotte o habita e beija Maxine, não é um homem beijando uma mulher. É um “desejo queer” se realizando através de um corpo neutro — ou melhor, “neutro até ser usado”. Malkovich não é gay, não é hétero: é “disponível”. E nessa disponibilidade reside sua violência simbólica. Ele não resiste. Ele persiste. E isso é mais aterrador que qualquer monstro.

Atualização Necessária

O filme não pergunta quem sou eu? — pergunta quem posso alugar?

A marionete, ofício de Craig no início, é a chave: controlar fios é a ilusão de agência. O que ele descobre no portal é que todos somos marionetes — só que alguns têm fios mais visíveis. Maxine sabe disso. Por isso nunca entra. Ela manipula quem entra. A verdadeira soberania, no mundo pós-moderno, não está em habitar um corpo, mas em decidir quem merece habitar outro.

Walter Benjamin via na reprodutibilidade técnica a perda da aura da obra de arte. Quero Ser John Malkovich leva isso ao ápice: não é a obra que perde a aura — é o sujeito. O nome próprio, outrora guardião da identidade, torna-se uma URL frágil, passível de phishing existencial. Quando Malkovich entra em seu próprio portal e encontra um mundo onde só existe Malkovich, ele não está sonhando. Está navegando na deep web da identidade: um lugar onde não há diferença entre autor, personagem e usuário.

A criança no final — Elijah, com a consciência de Malkovich e o corpo de Lotte — é o sujeito do século XXI: um patchwork de vozes, um arquivo .zip de subjetividades. Ela não é monstro. É upgrade.

Não há saída — só reentrada

Quero Ser John Malkovich não envelheceu. Envelhecemos nós — e finalmente o alcançamos.

Hoje, com deepfakes, IA generativa, avatares treinados em nossos dados, o portal não é mais ficção. É API. Basta um prompt, um upload de voz, um scan facial — e você pode ser John Malkovich. Ou sua avó. Ou Nietzsche. O filme não previu o futuro. Diagnosticou uma vontade que já estava lá, adormecida no andar 7½ da alma ocidental: a vontade de não ser original, mas repostável.

Assistir ao filme hoje é como reler Kafka com um contrato de usuário aberto no segundo monitor: as cláusulas estão todas lá, em letra miúda, mas já demos aceito sem ler.

Epílogo: Por que (não) assistir?

Assista se:
Você ainda acredita que sua identidade é uma essência — e quer sentir, por 112 minutos, o chão ceder sob essa crença. Assistir a Quero Ser John Malkovich é confrontar a pergunta que o algoritmo já respondeu por nós: Se você pudesse ser qualquer pessoa por sete minutos e meio… por que voltaria? O filme não oferece redenção. Oferece clareza — e clareza, em tempos de ilusão de escolha, é um ato de violência necessária.

Não assista se:
Você busca entretenimento que conforte a ideia de que “ser você mesmo” é um destino heroico. Este filme não celebra a autenticidade — desmonta sua arquitetura, tijolo por tijolo, até restar apenas um corredor escuro, um cronômetro e uma voz que não é sua, mas que, por um instante feliz, soa como se fosse.

Afinal, como diria Malkovich — ou alguém que habita Malkovich, ou alguém que habita alguém que habita Malkovich:
“É curioso. Sempre achei que meu cérebro fosse um lugar privado.”
Não é. Nunca foi.

FAQ: Perguntas que o filme não responde — porque já as incorporou

1. O filme é uma alegoria trans?

Não é — mas se presta. Lotte não “descobre ser homem” ao habitar Malkovich; descobre que o desejo não precisa de um corpo fixo para ser verdadeiro. Sua transformação não é de gênero, mas de modalidade existencial: ela passa de sujeito passivo a agente de sua própria encenação. O corpo de Malkovich funciona como passarela provisória — não como destino, mas como experimento. Nesse sentido, o filme antecipa uma ética queer radical: não ser, mas passar por. E voltar. E escolher não voltar.

2. Por que o bebê fala com a voz de Malkovich?

Porque o sujeito do futuro não nasce — é instalado. Elijah não é possessão demoníaca; é atualização de software. Sua consciência híbrida (Malkovich + Craig + Lotte) é o palimpsesto definitivo: uma identidade que já vem com histórico de login, cache de memórias alheias e permissões de administrador. A voz de Malkovich não domina o bebê — assina seu primeiro commit. Ele não chora. Declara: “Sou.” E já é uma citação.

3. Malkovich consentiu com a invasão?

O filme nunca mostra seu consentimento — porque o consentimento é irrelevante na economia do signo. Malkovich, como celebridade, já cedeu seu corpo à circulação simbólica. O portal não é uma violação pessoal; é a materialização do que já ocorre diariamente: o rosto de Malkovich é usado em memes, dublagens, paródias, sonhos alheios. O filme apenas torna visível o que a cultura faz em silêncio: colonizar o outro como forma de sobreviver a si mesmo.

Obs.: Informação não confirmada.

Há rumores de que, durante as filmagens, Malkovich exigiu uma cláusula contratual: caso o filme fosse um fracasso, ele teria o direito de “entrar no cérebro de Kaufman por sete minutos e meio para apagar a ideia”. Nunca se soube se era piada. Talvez piadas, nesse caso, sejam a única forma de verdade que ainda resiste à possessão.

4. Por que sete minutos e meio — e não dez? Não cinco?

Porque é o tempo de uma performance plausível. Sete minutos e meio é o limite do acreditável: tempo suficiente para uma confissão, um discurso, um ato sexual, um monólogo teatral — mas não para uma vida. O cronômetro não protege Malkovich. Protege nós — da tentação de acreditar que a fuga pode ser permanente. A brevidade é o que mantém a ilusão desejável. A eternidade não é o paraíso. É o buffer infinito.

5. Onde fica, hoje, o andar 7½?

Nas configurações de privacidade que você pula. No deepfake do político que parece tão convincente que você esquece de checar a fonte. Na voz clonada da sua avó em um app de memória póstuma. No avatar que responde seus e-mails enquanto você dorme — e, às vezes, tem ideias melhores que as suas.

O andar 7½ não é um lugar. É um modo de operação.
E o corredor?
Está sempre aberto.
Você só precisa se curvar.

Talvez você queira ver...

0 0 votos
Avalie o artigo
Inscrever-se
Notificar de
guest

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários