Não somos mais selvagens.
Dizemos isso enquanto monitoramos os outros com o canto do olho, enquanto sorrimos ao cumprimentar e já arquivamos o sujeito em uma gaveta taxonômica: perigoso, incompetente, exótico demais.
Em Zootopia, a civilização não é o fim da natureza — é sua tradução em código. Os animais não deixaram de ser o que são; aprenderam apenas a vestir ternos, falar em eufemismos e culpar os instintos pelos próprios julgamentos.
A cidade brilha como um manual de convivência bem-intencionado — e falacioso.
Ali, coelhos dirigem delegacias, raposas vendem picolés de casca de abacaxi, e ninguém mais deveria temer o rugido alheio.
Mas o que Zootopia revela, com a precisão de um bisturi animado, é que abolir a violência não basta quando se preserva sua gramática.
O preconceito não precisa de garras para funcionar. Basta uma palavra bem colocada, um silêncio estratégico, um olhar que hesita um décimo de segundo a mais.
A Cidade que Prometeu Tudo — Menos Honestidade
Zootopia estreou em março de 2016, dirigido por Byron Howard, Rich Moore e Jared Bush, com roteiro coescrito por Phil Johnston e Jennifer Lee. Produzido pela Walt Disney Animation Studios, arrecadou mais de US$ 1 bilhão mundialmente e levou o Oscar de Melhor Animação em 2017 — não por ser simplesmente fofo, mas por ousar transformar uma comédia policial em alegoria social sem concessões infantis.
O conceito nasceu de uma pergunta aparentemente ingênua: E se todos os mamíferos evoluíssem juntos, numa sociedade pós-predação?
Mas a inocência logo se desfez. Pesquisas com biólogos, antropólogos e especialistas em comportamento animal embasaram não só o design do mundo — com biomas distintos (Tundratown, Sahara Square, Rainforest District) — mas também a lógica interna da exclusão. A Zootopia idealizada é uma distopia mascarada de utopia: celebra a diversidade enquanto constrói elevadores para elefantes, rampas para roedores, e delegacias onde o único coelho é tratado como anomalia administrativa.
O timing também não foi acidental. Lançado em plena ascensão de discursos polarizados nos EUA e no mundo, o filme recusou o maniqueísmo fácil. Não há vilões natos. Há sistemas. E há medos internalizados. Há o perigo de acreditar que basta querer ser bom para deixar de ser parcial.
“Tudo o que fazemos é porque achamos que é o certo.”
— Nick Wilde, Zootopia
Essa frase, quase sussurrada, é a chave simbólica da obra: a moral não reside na intenção, mas no efeito. E o efeito, muitas vezes, é uma gaiola que construímos com as mãos e chamamos de proteção.
Nota sobre o título brasileiro
No Brasil, o filme recebeu o subtítulo “Essa Cidade é o Bicho”, uma intervenção típica da distribuição local em títulos estrangeiros. A intenção era reforçar o caráter lúdico da obra para o público infantil, ainda que tal adição dilua a ambiguidade conceitual do original “Zootopia”, cuja força está justamente na fusão entre “zoo” e “utopia”.
O Corpo como Signo Social
Em Zootopia, a espécie não é acidente biológico — é posição discursiva.
Ser coelho não significa apenas ter orelhas longas; é ser lido como frágil, ingênua, excessivamente entusiasmada. Judy Hopps chega à polícia carregando, antes do distintivo, o peso de 275 irmãos — um número que funciona como metonímia da superpopulação, da redundância atribuída aos corpos pequenos. Já Nick Wilde, raposa, não é apenas esperto: é necessariamente desonesto até que prove o contrário — e mesmo após provar, continua sendo vigiado como potencial ameaça.
A semiótica do filme opera em camadas:
- A cauda: quando Judy a toca nervosamente, é um leak corporal do medo de não pertencer.
- O distintivo: objeto fetiche que promete autoridade, mas que Bogo entrega com sarcasmo — “talvez caiba em algum lugar do seu uniforme”.
- A “arma” de Judy: um cilindro de spray de pimenta em forma de cenoura — ironia visual que escancara como a defesa dos marginalizados é sempre lida como ameaça disfarçada.
A “Noite dos Predadores” e a medicalização do medo
O golpe simbólico mais contundente do filme é a invenção da “síndrome de savagery”: uma regressão ao instinto, atribuída exclusivamente aos predadores. A ciência é instrumentalizada para transformar estereótipo em diagnóstico. O preconceito sai das ruas e entra nos laboratórios — ganha gráficos, percentuais e protocolos de contenção. É a lógica do outro perigoso, agora com jaleco branco.
Note: os predadores não ficam violentos. Eles são filmados como se estivessem.
A câmera de Bellwether — e depois a de Judy — é o verdadeiro vetor da violência. O signo precede o fato. A imagem produz a realidade. Aqui, Zootopia ecoa Foucault: o poder não reprime; ele classifica, nomeia, isola para proteger. E proteger, nesse caso, é sinônimo de excluir com boas intenções.
A Estética do Julgamento: Quando a Câmera é uma Testemunha Parcial
Zootopia não apenas fala sobre preconceito — ele o encena visualmente, com uma precisão quase clínica. A fotografia (sim, animação tem fotografia: luz, enquadramento, movimento) opera como extensão da suspeição social.
Considere os planos iniciais em Bunnyburrow: tons quentes, luz difusa, profundidade de campo ampla — o mundo é acolhedor, mas também limitado. Tudo cabe no mesmo quadro, como se o horizonte fosse uma promessa fechada. Já em Zootopia, a cidade é filmada em escalas desencontradas: Judy é constantemente enquadrada de baixo, diminuída por portas altíssimas, escadas gigantescas, balcões inalcançáveis. A arquitetura não é neutra: é um signo de desproporção institucional.
O zoom como gesto de suspeita
O dispositivo mais revelador é o zoom. Quando Judy filma Nick com o celular, o movimento não é documental — é acusatório. O zoom aproxima, mas não para entender: para isolar, enquadrar, capturar a prova. É a mesma lógica das câmeras de segurança, das redes sociais, dos deepfakes éticos: não registramos o outro — extraímos dele um indício. A estética do close-up vira ética da desconfiança.
E há o silêncio — não ausência de som, mas espaço não preenchido. As pausas entre Judy e Nick, especialmente após o discurso da coletiva, são carregadas de ruído emocional. A trilha, nesses momentos, se retira. Ouvimos a respiração. O estalo de uma orelha. O rangido de uma cadeira. O som do constrangimento. É aí, no vácuo auditivo, que o preconceito revela sua textura mais íntima: não é um grito. É um recuo.
“Você é o que todos dizem que você é.”
— Nick Wilde, de costas, voz quase apagada.
A cena não pede lágrimas. Pede escuta. E o filme, nesse instante, obriga o espectador a escolher: desviar o olhar ou permanecer na dor alheia.
O Sofrimento como Condição da Ética
Zootopia não propõe redenção fácil. Não há conversão súbita, nem arrependimento heroico. O que há é humilhação — e é nela que o filme encontra sua coragem filosófica.
Judy não erra por maldade. Erra por certeza. Acredita na justiça, no mérito, na força da vontade — e isso, paradoxalmente, a torna perigosa. Sua falha não é ter desconfiado de Nick; é ter acreditado que ela, coelha vítima de preconceito, estaria imune a exercê-lo. Aqui, o filme dialoga com Emmanuel Levinas: a ética não começa no encontro com o semelhante, mas com o radicalmente outro — e só se instaura quando reconhecemos que nossa visão é sempre parcial, nossa linguagem, sempre suspeita.
Nada de novo
A figura de Bellwether é crucial não como vilã, mas como espelho. Ela não quer destruir Zootopia; quer governá-la melhor — com mais controle, mais segurança, mais previsibilidade. Seu discurso é o do medo racionalizado: “Eles parecem civilizados… mas e se voltarem a ser o que são?” Substitua “eles” por qualquer grupo historicamente estigmatizado, e a frase permanece idêntica. O fascismo, lembra-nos o filme com delicadeza cruel, não chega com botas e gritos. Chega com gráficos, com testes psicológicos, com preocupação.
E Nick? Sua redenção não é virar herói. É finalmente falar em primeira pessoa. Durante anos, sua ironia foi uma armadura verbal — uma forma de assumir o estereótipo antes que lho impusessem. Só quando Judy o traí, e depois se curva, ele pode dizer: “Meu nome é Nicholas P. Wilde. E sou um bom policial.” Não serei. Não quero ser. Sou. O verbo no presente é ato político. É a recusa de viver no tempo condicional do preconceito: se você provar… se mudar… se merecer…
A cidade não muda no final. Os predadores ainda são maiores. Os coelhos, ainda mais numerosos. O que muda é o reconhecimento: conviver não é tolerar. É aceitar que o outro carrega uma história que você não leu — e que sua versão do mundo é apenas um parágrafo, nunca o livro inteiro.
A Cidade Continua de Pé — Mas Agora Sabemos Que Ela Tremula
Zootopia termina com uma cerimônia, uma foto sorridente, uma promoção. Mas o gesto final — Judy e Nick lado a lado na moto, olhando para a cidade — não é de triunfo. É de vigilância compartilhada. Eles não salvaram Zootopia. Apenas decidiram cuidar dela, sabendo que ela pode desmoronar a qualquer instante — não por força bruta, mas por um comentário malfeito, um dado manipulado, um silêncio conveniente.
O filme não oferece solução. Oferece consciência da falha. E nisso reside sua grandeza ética: recusa a fantasia de que o preconceito é um erro do passado, corrigível com educação e boa vontade. Ele é um sistema vivo, que se adapta, que se veste de ciência, de piada, de proteção. Superá-lo não é apagá-lo — é aprender a interromper seu automatismo. É dizer, como Judy aprende tarde demais:
“Quando eu disse que os predadores podem voltar ao instinto… eu não quis dizer que vocês são assim. Mas não importa o que eu quis dizer. O que importa é o que você ouviu.”
A linguagem não é propriedade de quem fala. É domínio de quem sofre seus efeitos.
Epílogo: O Coelho e a Raposa, na Escuridão da Sala
Anos depois, ainda nos sentamos frente à tela, esperando que o mundo se torne mais justo enquanto as luzes se apagam. Zootopia nos devolve esse gesto — mas inverte seu sentido. Não somos espectadores inocentes. Somos Judy e Bellwether. Somos Nick e Bogo. O filme não nos absolve com seu final feliz. Ele nos deixa com as mãos sujas de glitter de eleição, sussurrando:
Você acredita mesmo que o instinto é só dos outros?
Por que (e como) devemos assistir a Zootopia — hoje, em 2025?
Não se deve assistir a Zootopia como fábula consoladora. Quem busca um conto de superação linear sairá frustrado — ou pior: iludido. O filme não ensina que “basta acreditar em si mesmo”. Ensina que acreditar em si mesmo pode ser o primeiro passo para ferir alguém.
Assista se estiver disposto a se sentir desconfortável ao rir da piada do leão no bufê de insetos. E assista se quiser entender por que um elogio (“você é tão articulada para uma…” insira categoria) pode ser uma cela disfarçada de elogio. Assista se reconhecer, em Judy, sua própria urgência de corrigir o mundo — antes de escutá-lo.
Mas não assista sozinho. Assista com crianças — e depois, ouse perguntar: “Por que o Nick não podia ser policial antes?” A resposta delas será mais honesta que qualquer editorial. E talvez mais urgente.
Zootopia é um filme que confronta você com seus próprios preconceitos sutis.
Ele mostra que rimos do que reforça estereótipos, que elogios podem carregar prisões invisíveis e que boas intenções podem ferir quando não vêm acompanhadas de escuta.
Zootopia não é um manual de como acabar com o preconceito.
É um espelho com moldura de desenho animado — e espelhos, como sabem coelhos e raposas, só mentem quando a gente desvia o olhar.