Frankenstein Não Era o Monstro — Era o Método: A Ética do Desaprendizado em Pobres Criaturas

Arte - Pobres Criaturas

Ela acorda gritando — não de dor, mas de pura presença. Um grito sem memória, sem culpa, sem gramática. Bella Baxter não nasce: é reativada. Seu corpo, costurado por mãos que confundem criação com propriedade, é uma declaração de guerra travestida de milagre científico. Pobres Criaturas não é um conto de formação. É um ensaio sobre o direito de desaprender.

Frankenstein assombrou o século XIX com a pergunta: o que acontece quando damos vida ao que não deveria viver? Lanthimos inverte o vetor: o que acontece quando damos vida — mas exigimos que ela se comporte como se já tivesse morrido por dentro? A monstruosidade não reside no cadáver reanimado, mas no método que o domestica. Não é a criatura que é perigosa. É o currículo que lhe impõem.

O Laboratório como Confissão

Pobres Criaturas (2023), dirigido por Yorgos Lanthimos, com roteiro de Tony McNamara, é livremente inspirado no romance homônimo de Alasdair Gray — uma sátira gótica, enciclopédica e profundamente escocesa, publicada em 1992. O filme estreou na 80ª Mostra de Veneza, onde conquistou o Leão de Ouro e o prêmio de melhor atriz para Emma Stone. Willem Dafoe interpreta Godwin Baxter — não um vilão, mas um cientista melancólico, cujo rosto desfigurado é metáfora viva da ética despedaçada. Mark Ruffalo é Duncan Wedderburn, a caricatura perfeita do intelectual performático, cuja fala flui em prosa elisabetana enquanto sua alma definha em clichês.

A semiótica do corpo em Pobres Criaturas é brutalmente precisa: a cabeça de Bella (de uma mulher adulta, suicida) é transplantada no corpo de sua própria filha ainda no útero. O signo biológico é paradoxal — ela é mãe e filha, morta e recém-nascida, sujeito e objeto ao mesmo tempo. Roland Barthes diria que seu corpo é um texto sobrecodificado: cada gesto é lido, corrigido, arquivado. Quando ela toca o próprio sexo com curiosidade, não há pecado — há dado empírico.

A vergonha vem depois, imposta como nota de rodapé.

A Estética da Quebra

A fotografia de Robbie Ryan — lentes fisheye, cores hiper-saturadas (verdes ácidos, vermelhos quase radioativos), cenários que oscilam entre teatro de revista e gabinete de curiosidades — não é excentricidade. É estratégia.

A distorção visual recusa a ilusão do realismo burguês. Quando Bella caminha por Lisboa, as ruas parecem cenários de papelão. E são: porque a “realidade” que lhe apresentam é uma encenação. A cidade não é lugar — é roteiro. A câmera, ao tremer levemente em close-ups, não imita o documentário, mas o tremor do sujeito ao se deparar com uma mentira bem decorada.

Sua linguagem evolui em três fases — mas evolução é termo inadequado. É revolução em espiral. Primeiro, os sons: guturais, não-verbais, quase animais. Depois, a fala ensinada: frases curtas, obedientes, ecoando os dogmas de Godwin (“As mulheres são como cães — leais, mas irracionais”). Por fim, a insurgência sintática: ela começa a falar errado de propósito. Diz “penis” em vez de “problema”. Ri quando deveria chorar. Substitui “obrigada” por “vou cagar agora”. Cada erro é um ato de soberania. Como escreveu Deleuze: errar não é falhar — é abrir uma linha de fuga.

O Método como Monstro

Godwin não cria Bella. Ele a reinicia.

Seu laboratório é uma escola-modelo do Iluminismo perverso: a razão como ferramenta de contenção, o conhecimento como sistema de vigilância. Ele lhe ensina ciência, mas omite desejo. Ensina ética, mas apaga raiva. Ensina anatomia, mas proíbe toque. Seu amor é sincero — e por isso mais terrível. Ele acredita salvá-la. Eis o horror moderno: não mais o tirano que grita, mas o benfeitor que sussurra regras com voz de quem está ajudando.

Aqui, o filme dialoga com Mary Shelley não por homenagem, mas por correção. Victor Frankenstein é punido por transgredir a natureza. Godwin é punido por obedecer demais à razão. O monstro de Shelley quer ser amado. Bella não quer ser amada — quer ser deixada em paz para errar. Sua jornada até Alexandria não é busca por sabedoria, mas por desordem: prostitutas, fome, trabalho braçal, sexo sem romance. Ela descobre que o corpo não é um templo — é uma fábrica de perguntas.

O Risível como Arma

O riso de Bella é o signo mais subversivo do filme. Ela ri do discurso de Max McCandles (Ramy Youssef), médico apaixonado que tenta seduzi-la com teorias sobre o inconsciente. Ri de Duncan, quando ele recita Shelley diante do mar, como se a poesia fosse um lenço para enxugar a própria insignificância. Esse riso não é ingênuo. É crítica imanente. Antes de ter palavras para desconstruir, ela ri — e o riso, sendo incontrolável, escapa à domesticação. É o primeiro gesto livre.

Em Paris, Bella veste-se como homem, fuma cachimbo, exige salário igual. Não por ideal feminista pré-fabricado — mas porque sente a contradição no corpo. A justiça, para ela, não é um conceito abstrato: é o peso do bolso vazio, o tom da voz que lhe exigem, o espaço que lhe negam na mesa. Sua ética é tátil. Como diria Merleau-Ponty: não pensamos com a alma — pensamos com a carne.

A Utopia do Inacabado

Ao final, Bella não retorna ao laboratório para destruí-lo. Ela o reconquista. Transforma o espaço de controle em hospital público, lugar de cura sem hierarquia. Godwin, agora cego e frágil, é seu assistente — não como redenção, mas como reversão funcional. Aquele que a programou agora a escuta. Não há perdão. Há reconfiguração.

A grande lição de Pobres Criaturas não é que devemos voltar à inocência. É que a inocência pode ser uma forma de violência — quando usada para calar. Bella não quer ser pura. Quer ser polissêmica e dizer “sim” e “não” na mesma frase. Quer desejar o marido da amiga e, ao mesmo tempo, cuidar dela com ternura. E quer ser brilhante e tola, generosa e egoísta, santa e putona — sem precisar escolher uma categoria para sobreviver.

Frankenstein não foi punido por dar vida ao morto. Foi punido por achar que a vida deveria seguir um manual. Bella Baxter escapa ao destino trágico porque se recusa a ser coerente. Sua liberdade não está na resposta certa — mas no direito de fazer a pergunta errada, com voz alta, corpo nu e olhar fixo.

O Manual Não Tem Índice

No século XXI, somos todos pós-operados. Educados para sermos funcionais. Para escolher entre carreira ou maternidade, razão ou emoção, sucesso ou autenticidade. Pobres Criaturas não oferece um modelo. Oferece um gesto: o de arrancar as páginas do manual — não para queimar, mas para recortar, colar, transformar em asa. Bella não quer voar longe. Quer voar diferente. E às vezes, voar diferente é só cair — mas cair olhando para o céu, não para o chão.

Por que (ou por que não) assistir ao filme?

Pobres Criaturas não é entretenimento. É uma provocação estética. Exige que o espectador tolere o desconforto do riso ambíguo, da linguagem truncada, da beleza artificial. Quem busca narrativa linear, desenvolvimento psicológico clássico ou redenção moral sairá frustrado — e talvez ofendido. O filme não quer agradar. Quer desestabilizar.

Mas para quem aceita o desafio, o filme oferece algo raro: uma experiência de libertação sensorial. Emma Stone, em atuação que redefine sua carreira, transforma cada gesto em ato político. A direção de Lanthimos, aqui menos cruel que em O Sacrifício do Cervo Sagrado e mais lúdica que em A Favorita, atinge um equilíbrio único entre farsa e filosofia. O filme não tem medo de ser ridículo — porque sabe que o ridículo é onde a verdade costuma se esconder.

Assista se você ainda acredita que arte pode ser um ato de desobediência gentil. Não assista se quiser sair do cinema com respostas.
Este filme só dá uma: pergunte de novo — e ria enquanto pergunta.

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