Como não cair em fake news: uma análise semiótica das armadilhas do sentido

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Nem toda mentira precisa de palavras

Uma imagem de satélite mostra nuvens espessas sobre uma cidade. O texto ao lado afirma: “Esta é a fumaça dos protestos de ontem.”
Você acredita.
Não porque leu uma prova, mas porque reconheceu algo — o cinza, a densidade, o contorno familiar da geografia. O signo já havia fechado seu sentido antes que a dúvida tivesse tempo de respirar.

A fake news não triunfa pela força da invenção, mas pela delicadeza da sedução semiótica. Ela não grita; sussurra no ritmo do que já está pronto para ser crido.
Ela não distorce a realidade: reaproveita a economia do nosso olhar.

Roland Barthes escreveu que o mito transforma a história em natureza. Hoje, o mito contemporâneo vai além: transforma o ruído em reconhecimento. E, nesse processo, a vítima não é a verdade — é a possibilidade de hesitar.

Quando a linguagem perdeu seu atrito

Até meados do século XX, a desinformação exigia esforço. Panfletos, discursos radiofônicos, montagens fotográficas — tudo demandava tempo, recursos, e, sobretudo, um destinatário disposto a parar. A propaganda nazista, por exemplo, não se sustentava apenas por repetição, mas por uma estética coerente: tipografia, iconografia, gestualidade — um sistema semiótico inteiro, construído para tornar o absurdo familiar.

Hoje, a economia simbólica se inverteu.
Não há mais necessidade de construir um mundo alternativo. Basta desestabilizar o nosso.
A pós-verdade — termo eleito pela Oxford Dictionaries em 2016 — não descreve a era das mentiras, mas a era em que a afetividade supera a verificabilidade como critério de aceitação. Um tuíte com uma captura de tela distorcida pode circular mais que um relatório de 200 páginas do IPCC. Não por força argumentativa, mas por eficiência simbólica: ele fala a língua do gesto, do tom, do como se.

Informação não confirmada: a expressão “fake news” foi popularizada por Donald Trump em 2016, mas seu uso estratégico como dispositivo de deslegitimação — chamar de “fake” qualquer discurso que contrarie o próprio — revela algo mais profundo: o signo não está mais em crise; o contrato interpretativo entre emissor e receptor entrou em colapso.

A semiótica, aqui, não serve para classificar o que é falso. Serve para perguntar:
Por que este signo foi tão fácil de engolir?

O signo que se oferece como prova

A desinformação bem-sucedida raramente inventa do zero. Ela reconfigura signos já carregados de autoridade — e o faz em três camadas, quase sempre simultâneas, como uma armadilha de molas encaixadas.

1. O ícone: “isso parece real porque se parece com o real”

Uma foto de multidão. Um print de tela com logotipo da OMS. Um gráfico com eixos, cores sóbrias, fonte “Helvetica”. O ícone não argumenta; atesta. Sua força está na imitação sensível: quanto mais próximo do modelo perceptivo — o que Barthes chamaria de efeito de real —, mais rápido o cérebro o incorpora como dado bruto. Um deepfake de um político dizendo algo incendiário não convence pela fala, mas pelos microgestos: o piscar assimétrico, o leve trêmulo no lábio inferior. A verossimilhança corporal é mais persuasiva que a lógica do discurso.

2. O índice: “isso aponta para algo que já tememos”

O índice é o dedo que acusa. Uma seta sobre um mapa. Uma seta vermelha subindo em um gráfico. Uma hashtag que vincula dois eventos sem relação causal: #VacinaEMorte. O índice não precisa ser verdadeiro para ser eficaz. Basta sugerir uma conexão de causa — e, preferencialmente, uma que ressoe com um medo preexistente. Susan Sontag observou que as imagens de guerra não mostram a guerra; mostram nossa relação com a dor alheia. Da mesma forma, a desinformação não mostra o fato; mostra nossa relação com a ameaça.

3. O símbolo: “isso já tem nome — e nome é poder”

Chamar algo de “globalismo”, “teoria de gênero”, “ciência engajada” não descreve — classifica e condena. O símbolo opera no nível do mito: resumir complexidades em palavras que trazem consigo um mundo de associações morais, históricas, até religiosas. Um boato sobre microchips em vacinas não se sustenta por evidências, mas por um símbolo ancestral: o corpo invadido pelo poder oculto. Aqui, a semiótica encontra a psicanálise: o signo funciona porque toca em arquétipos — o traidor na sombra, o inocente corrompido, o profeta perseguido.

A ética da lentidão simbólica

A crise da verdade não é, em primeiro lugar, uma crise de fatos. É uma crise de tempo interpretativo.
Walter Benjamin previu, em A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, que a percepção moderna se tornaria “distraída” — não por acaso, mas por necessidade histórica. Hoje, essa distração se tornou sistema: o feed exige que o signo já chegue com seu sentido pré-mastigado. Hesitar é um bug no algoritmo.

Mas há algo mais perturbador: a desinformação floresce não onde há ignorância, mas onde há excesso de certeza simbólica.
Um médico pode duvidar de um estudo, mas acreditar num vídeo de colega “corajoso” que rompe o silêncio — não pela ciência, mas pelo gesto de denúncia, pelo tom de voz, pelo enquadramento que lembra um depoimento de herói.
A estética do testemunho — olhar direto à câmera, fundo desfocado, iluminação suave — tornou-se mais confiável que o método científico. Por quê?
Porque o testemunho simula uma relação ética: eu estou aqui, vulnerável, dizendo o que você teme que seja verdade.

Isso revela uma ferida antiga na modernidade: confundimos transparência com verdade.
Acreditamos que, se algo parece direto — sem mediação, sem estilo, sem retórica — então deve ser puro. Mas toda linguagem é mediação. Todo signo é escolha. A neutralidade é o disfarce mais eficaz da ideologia.

A pergunta, então, não é “isso é falso?”, mas:
Que desejo este signo satisfaz ao me poupar de pensar?
Que comunidade ele me promete, ao me entregar um inimigo claro?
Que alívio ele me dá — o alívio de não ter que sustentar a ambiguidade do mundo?

Umberto Eco escreveu que o signo é um convite à cooperação interpretativa.
A fake news é o signo que desliga o convite — e entrega, em seu lugar, uma chave já girada.

Verdade não é o que resiste à dúvida — é o que a exige

Desconfiar não é um gesto cínico. É um ato de respeito ao signo — e, por extensão, ao outro que fala, ao mundo que se mostra, à própria complexidade da experiência.

A semiótica não nos dá um antídoto contra a fake news. Dá algo mais precário, mais humano: a consciência de que todo sentido é frágil.
Que uma imagem pode ser fiel ao fato e falsa à intenção. Uma citação pode ser exata e traiçoeira no contexto.
Que um silêncio pode ser prova — ou apenas ausência de som.

A resistência, então, não está em acumular mais informações, mas em cultivar pausas simbólicas:
— antes de compartilhar, perguntar que emoção este signo despertou primeiro?
— diante de um gráfico, indagar quem escolheu o que não mostrar?
— ao ouvir um testemunho, escutar não só o que é dito, mas o que é poupado.

A verdade não habita no lado oposto da mentira.
Habita no intervalo entre o signo e sua pressa de ser crido.

E isso — esse intervalo — é o último território livre.

Epílogo

E então, o signo hesitou

Imagine um tuíte que não termina com ponto final.
Um vídeo que, no último quadro, mostra a câmera sendo desligada — o reflexo do operador no visor, por um instante, visível.
Um gráfico cuja legenda diz, em letra pequena: “Esta é uma representação. Toda representação exclui.”

São gestos mínimos. Quase imperceptíveis.
Mas neles reside uma ética: a de não fechar o sentido com chave de ouro —
mas deixá-lo entreaberto, como uma porta por onde ainda pode entrar a dúvida,
e com ela, o mundo.

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