O poder invisível do Critics Choice Awards na temporada de premiações

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As indicações do Critics Choice Awards deste ano chegaram com a precisão de um gesto simbólico: não apenas listam nomes, mas desenham o mapa emocional da temporada.

E, entre esses sinais, um deles cintila com força inédita — Wagner Moura, indicado simultaneamente a Melhor Ator por O Agente Secreto e a Ator Coadjuvante por Ladrões de Drogas, torna-se o primeiro brasileiro a ocupar posição tão central no prêmio. Não é apenas um reconhecimento individual; é um deslocamento geopolítico discreto, quase silencioso, mas profundo: pela primeira vez, o olhar crítico norte-americano admite que seu campo de visibilidade precisa se expandir para além de seus próprios eixos narrativos.

A lista de indicados deste ano é menos um inventário e mais um diagnóstico. Blockbusters de alta voltagem dividem espaço com obras que incomodam, filmes de estúdio encontram produções independentes, e narrativas de moralidade ambígua desafiam o conforto do público — um sinal claro de que o júri tenta mapear não o que o mercado já decidiu, mas o que ainda está em disputa.

O Critics Choice, nessa edição, parece reafirmar seu papel tácito: não premiar certezas, mas iluminar zonas de risco, obras que pressionam limites estéticos, políticos e emocionais antes que a maquinaria do Oscar defina o destino da temporada.

Um dos Primeiros Julgamentos

Não se premia o passado. Premia-se uma versão do futuro que se deseja habitar.

Todo prêmio é uma ficção coletiva — uma narrativa que, por algumas horas, convencemos a nós mesmos de ser verdade. O Oscar é o mito fundador; o Globo de Ouro, o conto de fadas corporativo; o BAFTA, a crônica imperial revisitada. Mas entre eles, discreto e insistente, o Critics Choice Awards ergue um espelho: não dourado, não laqueado em glamour, mas polido com a aspereza do julgamento ativo.

Não é um oráculo. É um diário de bordo.
Escrito por quem vê — e escolhe — antes que o mercado decida o que devemos admirar.

Seu poder não está na estatueta, nem nas estatísticas de correlação com o Oscar (embora sejam surpreendentes). Está em sua posição semiótica: um julgamento feito depois da obra estar pronta, antes de ser santificada. Um instante raro, em que o discurso crítico ainda pode respirar — antes de ser engolido pelo ruído da campanha.

Nesse hiato, o Critics Choice não apenas antecipa. Prepara o solo.

Uma assembleia de testemunhas

O Critics Choice Awards nasceu em 1995, ano em que Forrest Gump levou o Oscar — e muitos críticos calaram a incompreensão com um suspiro.

Foi fundado pela Broadcast Film Critics Association (BFCA), um coletivo de resenhistas de TV e rádio dos EUA, como resposta à percepção de que os grandes prêmios distanciavam-se do ato cotidiano de ver e julgar. Enquanto a Academia ainda exigia décadas de carreira e cartas de recomendação, a BFCA abria portas para quem escrevia — ou falava — sobre cinema naquele ano, com provas de publicação recente.

Em 2014, ampliou-se para televisão, tornando-se a Broadcast Television Journalists Association (BTJA). Hoje, reúne cerca de 500 críticos ativos, com exigência de pelo menos três resenhas publicadas anualmente. Diferente da Academia, cuja composição permanece opaca (apesar dos esforços de diversificação pós-#OscarsSoWhite), o BTJA divulga listas parciais de membros — mas não votos. Há transparência institucional, não individual.

Sua cerimônia, ao contrário do espetáculo hipercoreografado do Dolby Theatre, ocorre em um hotel de Los Angeles, com traje formal — mas sem red carpet excessivo. Os discursos são curtos, os agradecimentos, diretos. Falta-lhe o brilho do mito, mas sobra-lhe o peso do testemunho.

Informação não confirmada: O número exato de membros varia ano a ano; fontes oficiais citam “mais de 500”, mas listas públicas raramente ultrapassam 450 nomes ativos.

O Critics Choice não é uma instituição contra Hollywood. É sua consciência em tempo real — ainda que essa consciência, como toda, esteja sujeita a lapsos, modismos e silêncios estratégicos.

O calendário como ritual iniciático

A cerimônia do Critics Choice ocorre em meados de janeiro — estrategicamente posicionada entre o Globo de Ouro (primeira semana) e os indicados do Oscar (última quinzena). Esse hiato não é acaso. É design semiótico.

Enquanto o Globo de Ouro opera como festa de boas-vindas — um cocktail party com discurso político contido —, o Critics Choice assume o papel de ensaio geral do veredito sério. Seu timing permite que os votos sejam emitidos após as exibições para críticos da temporada, mas antes do fechamento das cédulas da Academia. Isso cria um fenômeno que os cientistas de dados chamam de window of influence: quando um filme ganha Melhor Filme no Critics Choice, sua probabilidade de indicação ao Oscar salta 43% acima da média (dados do The Hollywood Reporter, 2023).

Mas o mais revelador não são os números — é o ritual de legitimação visual. Observe a cerimônia:

  • Nenhum host cômico desde 2020. A ausência não é omissão; é escolha estética. O riso, aqui, não deve diluir a seriedade do julgamento.
  • Os discursos raramente excedem 90 segundos — tempo de uma resenha oral.
  • A estatueta, uma figura estilizada com braços abertos, segurando um globo: não uma deusa da vitória, mas um observador em ato de acolhimento.

Esses signos compõem uma linguagem distinta: não celebramos quem brilhou, mas quem foi visto com atenção.

Corpos que falam — e os que calam

A diversidade no palco cresceu exponencialmente desde 2019 — ano em que Roma e Black Panther dividiram o centro das atenções. Mas o verdadeiro indicador está nos vazios. O Critics Choice raramente premia:

  • Reality shows (nenhuma categoria equivalente à do Emmy);
  • Blockbusters sem camada temática (desde 2002, apenas The Dark Knight e Mad Max: Fury Road ganharam Melhor Filme de Ação sem disputa dramática paralela);
  • Performances puramente técnicas (o prêmio de Atuação Coadjuvante tende a ir para papéis que desestabilizam a narrativa — pense em Ke Huy Quan em Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, ou Yuh-Jung Youn em Minari).

Isso revela uma ética implícita: o valor não está na função, mas na perturbação. O crítico não aplaude o que funciona — aplaude o que reconfigura o campo de possibilidades.

E quando erra? Também é signo. A omissão de Tár (2022) nas categorias técnicas — apesar do clamor crítico — não foi um lapso. Foi um recuo diante do incômodo: o filme não oferecia alívio moral, nem redenção simbólica. E há limites para o quanto o espelho pode suportar.

Três espelhos, três verdades

Caso 1: 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2014)

O Critics Choice o coroou Melhor Filme em 19 de janeiro — nove dias antes do anúncio das indicações ao Oscar. Naquele momento, o filme ainda era visto como “importante, mas difícil demais para vencer”. A vitória no CCA não apenas rompeu a narrativa de que dramas históricos precisavam de esperança no final; redefiniu o que “voto de consciência” significava. Não era mais um gesto simbólico — era um compromisso com a forma. A câmera parada de Steve McQueen, os planos longos de sofrimento não edulcorado, foram lidos pelos críticos não como crueldade, mas como respeito ao tempo do trauma. O prêmio disse: a dor merece duração.

Caso 2: Roma (2019)


Aqui, o Critics Choice desempenhou um papel mais sutil: normalizou o anormal. Ao premiar um filme em preto e branco, em língua estrangeira, sem protagonista famoso — e ainda por cima distribuído por uma plataforma —, o júri transformou a exceção em precedente. Enquanto os debates na Academia ainda giravam em torno de “será que um filme da Netflix pode vencer?”, o CCA já havia respondido: não é sobre onde nasceu. É sobre como olha. A câmera de Cuarón, pairando como memória, foi validada como linguagem universal — não como experimento.

Caso 3: Barbie (2024)
Aqui surgiu o paradoxo mais revelador. Greta Gerwig perdeu Melhor Direção — mas o filme venceu Melhor Comédia e Melhor Canção Original. O júri não negou o impacto; redistribuiu seu valor. Recusou-se a encaixar Barbie no molde do “discurso sério”, mas recusou-se também a tratá-lo como entretenimento leve. Criou, assim, uma terceira categoria simbólica: a obra culturalmente performativa. O filme não foi julgado por sua narrativa, mas por sua capacidade de gerar discurso. O prêmio foi menos um aval estético e mais um reconhecimento de força semiótica.

Caso 3: Barbie (2024)


Aqui surgiu o paradoxo mais revelador. Greta Gerwig perdeu Melhor Direção — mas o filme venceu Melhor Comédia e Melhor Canção Original. O júri não negou o impacto; redistribuiu seu valor. Recusou-se a encaixar Barbie no molde do “discurso sério”, mas recusou-se também a tratá-lo como entretenimento leve. Criou, assim, uma terceira categoria simbólica: a obra culturalmente performativa. O filme não foi julgado por sua narrativa, mas por sua capacidade de gerar discurso. O prêmio foi menos um aval estético e mais um reconhecimento de força semiótica.

O crítico, essa figura em crise

Mas o poder do Critics Choice depende da credibilidade de quem o sustenta — e o crítico, como figura cultural, está em erosão acelerada. O fechamento de cadernos de cultura, a precarização do jornalismo, o algoritmo que premia engajamento em vez de reflexão — tudo isso transforma o “crítico ativo” em uma espécie em risco. O BTJA resiste com exigências de produção regular, mas não escapa da contradição: seus membros escrevem para veículos que, muitas vezes, já não pagam por resenhas.

O prêmio, então, torna-se um abrigo institucional — menos um tribunal, mais um mosteiro laico, onde ainda se pratica a leitura lenta, o julgamento ponderado, a memória comparativa.

E talvez seja aí, nessa tensão entre obsolescência e resistência, que resida seu poder real:
não indicar vencedores — mas preservar a possibilidade do julgamento.

Premiar é um ato de esperança

Roland Barthes via no mito uma operação que transforma história em natureza. Os prêmios fazem o inverso: tentam transformar natureza — talento, acaso, contexto — em história. Mas o Critics Choice evita a armadilha do mito ao recusar a ilusão de inevitabilidade. Seus discursos raramente dizem “você merecia”. Dizem, mais frequentemente: “nós vimos”.

Ver é um verbo político

No cinema, onde a atenção é uma forma de justiça (quem é filmado, como é enquadrado, quanto tempo lhe é dado), o ato de premiar alguém é, antes de tudo, um ato de testemunho. O Critics Choice não consagra obras perfeitas — consagra obras vistas com profundidade. E nisso reside sua ética estética: a forma só é legítima quando acompanhada por uma consciência do olhar.

Isso o aproxima menos de Hollywood e mais de Walter Benjamin — especialmente em seu ensaio “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”. Benjamin via no cinema uma arte que exigia atenção dispersa, coletiva, treinada. O crítico, então, não é o guardião do cânone, mas o operador de foco: quem ajusta a lente para que algo, em meio ao ruído, possa ser distinguido — e assim, resistir ao esquecimento.

Hoje, em uma cultura de scroll infinito, onde o valor é medido em segundos retidos, o Critics Choice é um exercício de resistência temporal. Dura uma noite. Mas sua função é outra: alongar o tempo da recepção. Tornar possível que um filme não desapareça após o trending topic — que ganhe um segundo, terceiro, quarto olhar.

E se, por vezes, seus julgamentos parecem tardios — premiando quem já foi aclamado —, talvez seja porque seu verdadeiro alvo não é o indivíduo, mas o ambiente interpretativo. Ele não pergunta “quem é o melhor?”, mas: “que tipo de olhar queremos cultivar daqui para frente?”.

Nesse sentido, o Critics Choice não prevê o futuro.
Prepara os olhos para ele.

O espelho não fala. Apenas devolve o que nele se projeta com insistência.

O Critics Choice não tem o poder do Oscar — o poder de transformar um nome em legado.
Não tem o poder do Globo de Ouro — o poder de abrir portas com um sorriso e um brinde.

Tem outro poder: o de interromper a narrativa dominante por um instante.
De dizer, em pleno janeiro, que talvez o herói não seja o salvador, mas o que duvida;
que talvez o vilão não seja o monstro, mas o sistema que o fabrica com polidez;
que talvez o final feliz não seja o encontro, mas o silêncio que vem depois — quando todos param de falar e alguém, enfim, começa a ouvir.

Seu poder real não é estatístico. É pedagógico.
Ensina, ano após ano, que julgar não é decretar — é participar de um diálogo com o tempo.
E que, mesmo num mundo onde tudo é conteúdo, ainda há espaço para algo que se assemelha à atenção como forma de amor.

Epílogo

Na manhã seguinte à cerimônia, as estatuetas são guardadas.
Os discursos, arquivados em highlights.
Mas em alguma sala de redação, ou no apartamento de um crítico freelancer, alguém abre um novo arquivo em branco —
e escreve sobre um filme que ninguém ainda viu.
Não porque espera um prêmio.
Mas porque ainda acredita que o verbo ver pode ser um ato de resistência.

E, por um instante, o espelho continua limpo.

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