Não São Máquinas Que Quebram — São Memórias: Semiologia do Horror em Five Nights at Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim

Não é o movimento que assusta — é a espera

A câmera desliza por um corredor vazio. Luzes fluorescentes zumbem, intermitentes. O carpete — manchado, desbotado — sugere anos de pés pequenos, de festas esquecidas, de risadas que já não ecoam. Nada se move. E, ainda assim, o coração acelera. Em Five Nights at Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim, o terror não habita o grito, mas o silêncio que o antecede. Não está no animatrônico que avança, mas na certeza de que ele já estava ali, apenas esperando ser visto.

Esse é o paradoxo do filme: quanto mais imóvel o mundo, mais agitada se torna a memória.

A cabine de segurança, com suas telas trêmulas e botões que rangem, não é um abrigo — é um confessionário tecnológico. Cada clique de câmera é uma tentativa de vigiar o passado antes que ele nos alcance pela nuca. E os bonecos? Não são máquinas quebradas. São memórias que insistem em falar — com vozes distorcidas de fita cassete, com olhos de plástico rachado, com mãos que se abrem não para abraçar, mas para exigir: lembre-se.

Do pixel ao trauma: uma mitologia nascida no medo compartilhado

Five Nights at Freddy’s começou não como filme, mas como fantasma digital.

Em 2014, Scott Cawthon, um desenvolvedor independente então desconhecido, lançou um jogo de survival horror cuja premissa era aparentemente simples: sobreviva cinco noites em uma pizzaria abandonada, vigiando câmeras enquanto animatrônicos — Freddy Fazbear, Bonnie, Chica e Foxy — se movem nas sombras. O orçamento era irrisório. A estética, propositalmente tosca: polígonos angulosos, texturas granuladas, sons de sintetizador desafinado.

E, ainda assim, viralizou. Não por perfeição técnica, mas por resonância simbólica: o jogo capturou, com precisão quase arqueológica, o medo de uma geração que cresceu entre festas em Chuck E. Cheese, brinquedos de plástico duvidoso e a suspeita silenciosa de que o mundo adulto escondia algo sob o sorriso dos palhaços.

O cinema chegou quase uma década depois. Em 2023, dirigido por Emma Tammi e produzido pela Blumhouse (Hereditary, Get Out), o filme expandiu a mitologia com uma narrativa original centrada em Mike Schmidt (Josh Hutcherson), um jovem traumatizado pela desaparecimento do irmão mais novo, Gregory, duas décadas antes. Ao aceitar um emprego noturno de segurança na já decadente Freddy Fazbear’s Pizza, Mike não busca um salário — busca uma pista. Ou um castigo.

A recepção foi bifurcada: críticos tradicionais apontaram inconsistências narrativas; fãs celebraram a fidelidade ao ethos do jogo — menos lógica, mais lógica emocional. A bilheteria, porém, foi inequívoca: US$ 297 milhões mundiais, com plateias que iam além do público gamer, incluindo adultos que, diante da tela, reconheciam não só os bonecos, mas algo mais antigo: a sensação de ter sido deixado sozinho, à noite, em um lugar que um dia prometeu felicidade.

Sobre o título

O título brasileiro Five Nights at Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim é uma escolha interessante — e ambígua, no melhor sentido.

Por um lado, é eficaz comercialmente: evita termos muito abstratos (“memória”, “trauma”, “arquivo”) e aposta no pathos imediato do horror — “pesadelo” evoca o estado onírico do medo, e “sem fim” reforça a sensação de repetição cíclica, tão central no jogo e no filme (as noites se repetem; o trauma, também).

Por outro, há uma perda conceitual sutil, mas significativa: o original em inglês, Five Nights at Freddy’s, é propositalmente neutro, quase burocrático — como um relatório de trabalho (“Turno Noturno #3 – Freddy’s Pizza”). Essa frieza contrasta com o horror que se desenrola, intensificando o uncanny. Já “O Pesadelo Sem Fim”, embora poético, antecipa o tom emocional, reduzindo levemente a tensão entre aparência lúdica e substância traumática — o cerne da obra.

Ainda assim, o acréscimo funciona como convite ético: o “sem fim” não é apenas sensacionalismo. É um eco do filme, que recusa a cura mágica. O pesadelo não termina — transforma-se. E nesse sentido, o título brasileiro, mesmo simplificando, acaba capturando, involuntariamente, uma das ideias mais profundas da narrativa:
algumas feridas não cicatrizam; aprendem a andar na penumbra.

O lúdico em estado de putrefação

A pizzaria não é um cenário — é um corpo em decomposição lenta.

A direção de arte (Mara LePere-Schloop) e a fotografia (Luis Sansans) constroem um mundo onde o tempo não passa: ele coagula. As paredes exalam um amarelo-esverdeado, cor de dente de leite envelhecido. O carpete, com seu padrão de losangos vermelhos e pretos, parece absorver não só passos, mas memórias — como se cada mancha fosse um pequeno túmulo de algodão-doce e refrigerante derramado. A iluminação, quase toda fluorescente, cria sombras duras e planas: não há penumbra romântica aqui, apenas o brilho clínico de um necrotério disfarçado de parquinho.

Esse design do trauma não é acidental. É a materialização visual do que Freud chamou de unheimlich — o inquietante familiar. O que assusta não é o estranho, mas o conhecido que se recusa a morrer. As bolas de plástico na piscina seca, o palco com cortinas mofadas, o balcão de onde um dia saíam pepperoni pizzas: são restos de uma promessa de infância que falhou. E nesse espaço, os animatrônicos não invadem — habitam. Eles não são intrusos. São os únicos que permaneceram fiéis ao lugar.

Freddy, Bonnie, Chica: arquétipos desmontados

Barthes diria que todo signo tem um significante (a forma) e um significado (o conceito). Nos anos 1980, o animatrônico era signo de festa, comunidade, consumo inocente. Freddy — urso de cartola, sorriso largo, guitarra dourada — significava: você está seguro aqui. Mas em Five Nights at Freddy’s, o mesmo significante é sobrecarregado por um novo significado: você nunca esteve seguro.

A genialidade simbólica do filme está em não demonizá-los. Freddy não ri com maldade. Seus movimentos são lentos, quase hesitantes — como se carregasse o peso de sua própria contradição. Ele é, ao mesmo tempo, o palhaço da festa e o guardião do túmulo. O corpo do boneco é um sarcófago tecnológico. A espuma de poliuretano, o aço oxidado, os fios expostos — tudo isso é a materialização do que não pôde ser dito: crianças foram apagadas, e o mundo seguiu servindo refrigerante.

A cabine como mente sitiada

A cabine de segurança é a metáfora mais precisa já filmada do funcionamento traumático da memória.

As câmeras não mostram o presente — mostram fragmentos do passado, em ângulos distorcidos, com atrasos, com falhas de sinal. Assim é a recordação do abuso: não linear, não confiável, cheia de blind spots. Fechar as portas metálicas é tentar bloquear o retorno — mas o oxigênio acaba. A falha de energia, então, não é um defeito técnico: é o momento em que os mecanismos de defesa colapsam, e o corpo, enfim, sente o que a mente tentou isolar.

Mike não dorme na cabine. Ele desmaia. Sua narcolepsia — introduzida como traço de personagem — é, na verdade, o sintoma de uma psique que desliga sempre que o passado ameaça se tornar presente. O filme entende algo raro no horror contemporâneo: o verdadeiro monstro não está lá fora. Está na forma como organizamos (ou desorganizamos) o tempo interior.

O corpo como testemunha — e o silêncio como cumplicidade

Five Nights at Freddy’s não é um filme sobre fantasmas. É um filme sobre arquivos. Cada animatrônico é um dispositivo de armazenamento: não de dados, mas de gritos não emitidos, de corpos desaparecidos, de instituições que preferiram o esquecimento à reparação.

A pizzaria é, assim, uma variação contemporânea do monumento negativo — aquele que não celebra, mas marca a ausência. Como os stolpersteine (pedras de tropeço) espalhadas pela Europa em memória das vítimas do Holocausto, Freddy Fazbear’s Pizza é um lugar que insiste: aqui, algo foi apagado. Pise com cuidado.

Eco escreveu que os signos não se esgotam — acumulam camadas de sentido ao longo do tempo. O que era, nos anos 1980, um entretenimento familiar tornou-se, nas mãos de Cawthon e depois de Tammi, um signo de alerta cultural: cuidado com os lugares que prometem inocência. Cuidado com os sorrisos que não param de sorrir. O filme toca em uma ferida estrutural da modernidade: a confiança cega nas instituições de acolhimento — escolas, igrejas, parques, pizzarias com shows animatrônicos — como se a presença de uma guitarra dourada bastasse para garantir que nada de mal acontecerá.

passado e silêncio

Mas talvez sua contribuição mais urgente seja ética: o filme recusa a redenção fácil. Não há exorcismo. Não há destruição definitiva dos bonecos. Há, sim, um gesto frágil: Mike abraça Abby, a irmã mais nova de Gregory, e diz: eu vou te proteger. É uma promessa humana — não divina, não tecnológica — feita no meio do escombros. A cura, sugere o filme, não é apagar o passado, mas reconhecer que ele ainda fala através de nós. E que, às vezes, proteger alguém é simplesmente não repetir o silêncio.

Benjamin escreveu que não há documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie. Freddy Fazbear’s Pizza é isso: um documento. Não de monstros, mas de como os monstros são fabricados — não com garras e dentes, mas com descaso, negação e a decisão de continuar servindo buffet de aniversário sobre um porão onde o tempo parou em 1983.

O pesadelo não tem fim — e talvez não deva ter

Five Nights at Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim não é um filme perfeito. Há escolhas narrativas que vacilam, transições que rangem como dobradiças enferrujadas, momentos em que o apelo ao fã sobrepõe-se à coesão dramática. Mas o cinema não se mede apenas pela engrenagem — também pelo eco. E este filme ressoa. Não porque assusta, mas porque reconhece. Reconhece o corpo que guarda, sob a pele, o mapa de um trauma nunca nomeado. Reconhece a criança que, mesmo adulta, ainda verifica se as portas estão trancadas antes de fechar os olhos.

A grandeza do filme está justamente em sua recusa do fechamento absoluto. O final — Mike e Abby sobreviventes, a pizzaria queimada, os bonecos aparentemente destruídos — não é um ponto final. É uma vírgula suspensa. Porque o pesadelo não pode acabar enquanto houver uma única criança cuja dor foi confundida com imaginação, um único espaço de acolhimento que se tornou esconderijo do abuso, um único adulto que prefere acreditar na versão limpa da história.

O horror, aqui, é ético antes de ser estético. E isso, hoje, é raro.

O veredito

Vale a pena assistir? Sim — mas com os olhos certos.
Não vá em busca de sustos baratos ou lógica impecável. Five Nights at Freddy’s exige outra postura: a do ouvinte. É um filme que só revela sua força quando aceitamos que seu verdadeiro protagonista não é Mike, nem Abby, mas o silêncio que paira entre as câmeras de segurança — aquele silêncio que precede o grito, que esconde a pergunta: quem permitiu que isso acontecesse? Se você está disposto a encarar o horror como linguagem do não dito, como arquivo corporal de violência institucional, então o filme é essencial. É um raro exemplo de terror que, em vez de oferecer fuga, pede responsabilidade.

Mas evite se…
Você busca entretenimento puramente sensorial, sem ressonância emocional ou simbólica. O filme não perdoa a superficialidade. Ele exige que você se lembre — de festas de aniversário, de brinquedos que pareciam sorrir demais, de adultos que desviaram o olhar. E há quem não esteja pronto para isso. O pesadelo, afinal, só é interminável quando insistimos em trancá-lo na cabine — em vez de abrir a porta, olhar nos olhos do boneco, e perguntar: quem você está carregando aí dentro?

Epílogo: O que os bonecos sabem

Eles não querem nos matar.
Querem que lembremos.
Que admitamos: o sorriso de plástico rachou porque alguém gritou dentro dele.
Querem que lembremos que a guitarra emudeceu porque uma canção foi interrompida.
Que o pesadelo não é sem fim —
é sem resposta.
E enquanto não respondermos,
eles continuarão vindo.
Lentos.
Inevitáveis.
Famintos não de carne,
mas de verdade.

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