A câmera desce o rio — mas não é só o barco que navega: é o olhar ocidental, armado de lente, entrando numa floresta que não pediu para ser filmada.
O motor ronca baixo. As árvores se fecham como pálpebras. Ninguém nota, ainda, que o que está sendo gravado não é um documentário sobre os Shuar, mas o testamento de um modo de ver que a floresta está prestes a digerir.
Anaconda (1997) é frequentemente lembrado como um B-movie de verão: efeitos risíveis, atuações exageradas, serpente de plástico digital que parece sair de um pesadelo de Spielberg após três cafés.
Mas há algo mais — algo que resiste à zombaria fácil. O filme não falha apesar de sua ambiguidade ética; ele falha porque a assume. E nessa falha, revela-se como um sintoma preciso de uma crise maior: a impossibilidade de filmar o outro sem devorá-lo.
O horror aqui não mora apenas nos dentes da serpente.
Mora na câmera que insiste em gravar mesmo quando já não há mais sujeito — apenas pretexto, e depois, só devoração.
Amazonas, Brasil
Anaconda foi lançado em 11 de abril de 1997, nos Estados Unidos, pela Columbia Pictures.
Direção de Luis Llosa — peruano radicado nos EUA, sobrinho do ex-ditador Alberto Fujimori —, numa escolha que já carrega ambiguidade: um latino-americano conduzindo um thriller sobre a Amazônia, filmado majoritariamente no Rio Negro (Amazonas, Brasil) e em locações na Colômbia, com atores norte-americanos dublando nativos e inventando dialetos.
O roteiro, de Hans Bauer, Jacinto Molina (também conhecido como Paul Naschy, lenda do horror espanhol) e Dwight H. Little, parte de um gênero híbrido: eco-horror com pretensão etnográfica. O elenco reúne Jennifer Lopez, então em ascensão pós-Selena (1997), como Terri Flores, cineasta idealista; Ice Cube como o técnico de som cético; Eric Stoltz como o marido da protagonista; e Jon Voight, em um dos papéis mais densos de sua carreira tardia, como Paul Sarone, o guia caçador — ex-missionário, ex-etnógrafo, agora caçador de lendas.
Filme de estúdio, sim — mas não apenas de estúdio.
Há registros de conflitos durante as filmagens: comunidades locais questionaram o uso de símbolos indígenas sem consulta; técnicos relataram desconforto com a insistência em retratar a floresta como espaço hostil, inimigo por natureza.
O CGI da serpente, hoje datado, foi, na época, ousado: 13 metros de animação key-framed, sem motion capture — cada movimento calculado, deliberadamente não natural, como se a besta devesse parecer inventada para ser crível.
O pretexto ético: o documentário como disfarce narrativo
Terri Flores carrega uma câmera Betacam como quem carrega um salvo-conduto moral. Seu projeto — filmar os Shuar, tribo real do Equador e Peru (não da Amazônia brasileira, detalhe relevante) — é apresentado como resgate cultural. Mas o filme quase não mostra os Shuar.
E a câmera de Terri filma folhas, rios, rostos de atores não indígenas pintados com tinta de açaí. O documentário não é interrompido pela serpente: ele já estava vazio desde o início. A expedição é um significante sem significado, um ritual de legitimidade que a narrativa, discretamente, desmonta.
Sarone: o caçador como figura semiótica
Jon Voight transforma Paul Sarone em um dos personagens mais perturbadores do cinema de horror dos anos 1990 — não por sua violência, mas por sua escuta.
Enquanto os demais falam em sobrevivência, ele sussurra à serpente. Enquanto os outros veem um animal, ele vê um interlocutor. Sua queda não é moral — é linguística. Ex-missionário, ele já tentou nomear o sagrado com palavras alheias. Agora, busca uma língua que não precise de tradução: o aperto, o calor, o engolimento. Sarone não quer matar a anaconda. Quer ser reconhecido por ela. É o desejo do colonizador levado à sua conclusão lógica: não basta dominar — é preciso ser absorvido pelo mito que se inventou.
A serpente como signo de excesso
Com 13 metros (mais que o dobro do tamanho máximo real de uma Eunectes murinus), a anaconda do filme é um hipersigno. Roland Barthes diria que ela ultrapassa o significante e invade o estranhamento do real.
Ela não representa o perigo da floresta — ela é o perigo da representação. Toda vez que abre a boca, não engole corpos: engole narrativas. O cinegrafista, o antropólogo, o caçador — todos são apagados não pela fome, mas pela lógica do monstro como corretor semiótico. A floresta não mata invasores. Corrige traduções.
Estética do estranhamento amazônico
A fotografia de Bill Butler — veterano de Tubarão (Jaws, 1975) — evita o exotismo colorido. Tudo é verde, sim, mas um verde pesado, úmido, que gruda na lente. O uso constante de névoa e backlight cria um efeito de desfocagem ontológica: nunca se sabe onde termina a árvore e começa a sombra, onde acaba o galho e inicia a serpente.
O som reforça: a trilha de Randy Edelman mistura harpas e tambores stylizados, nunca autênticos — uma música que finge ser ritualística. É o horror do quase familiar, do quase verdadeiro. A floresta não é hostil; é indiferente, e essa indiferença é filmada como ameaça.
O corpo como campo de batalha semiótico
A cena mais perturbadora não é a morte mais sangrenta — é a do antropólogo sendo esmagado em plano médio, sem trilha, sem corte. Vemos o peito se erguer, depois se imobilizar. A serpente não dilacera: reescreve. O corpo deixa de ser sujeito e vira superfície de inscrição — como um rolo de filme sendo enrolado para dentro do projetor.
O horror não está no grito que não sai, mas no silêncio que se instala quando o tórax já não pode mais ser lido como humano.
A falha do documentário: quando a câmera é destruída
A Betacam de Terri é arrastada para o rio. Outra é engolida. Outra, partida ao meio. O filme repete o gesto: destruição do aparato de registro. Não é acidente narrativo — é ética involuntária. Quando a câmera desaparece, o que resta não é caos, mas outra ordem: a da floresta como narradora. O monstro não silencia as vítimas. Ele as convida a parar de traduzir.
O monstro como resposta da floresta
A anaconda não é metáfora da natureza selvagem — é metáfora da natureza como sujeito que responde. Ela não habita o imaginário ocidental como besta irracional, mas como lógica alternativa. Enquanto os personagens operam com categorias fixas — documentário/cinema, civilização/selvageria, caça/conservação —, a serpente dissolve essas fronteiras num único gesto: o enrolar. Não há julgamento moral em seu ataque. Há reconfiguração.
Isso ecoa a antropologia perspectivista de Eduardo Viveiros de Castro: na cosmologia ameríndia, o mundo não é habitado por uma única natureza e múltiplas culturas, mas por múltiplas naturezas e uma só cultura subjacente — e os animais veem os humanos como espíritos desfigurados.
A anaconda do filme, então, não erra ao atacar: ela corrige uma percepção. O cinegrafista, para ela, não é um homem com uma câmera. É um espírito barulhento, deslocado, que insiste em traduzir o que não lhe foi dado entender.
Walter Benjamin escreveu que toda civilização é também uma barbárie — mas esqueceu que toda barbárie pode, por vezes, ser uma linguagem. A serpente aqui é isso: um signo que se recusa a ser decifrado, e que, em vez disso, reinscreve o decifrador.
O que sobra no rio?
O filme termina com Terri e Danny (Ice Cube) sobrevivendo — e filmando. Mas agora, a câmera não aponta para os outros. Aponta para trás: para o rio, para a ausência, para o que não pode mais ser nomeado. O último plano é ambíguo: é redenção? Ironia? Talvez seja apenas o que resta após o fracasso do sentido: um gesto vazio, repetido com devoção.
Filmar não é mais um ato de conhecimento.
É um ato de luto.
Epílogo
A serpente desaparece nas águas escuras.
Ninguém a vê partir — só o círculo da onda, que se fecha como uma vírgula mal colocada.
E no silêncio que se segue, pela primeira vez, a floresta não é fundo.
É primeiro plano.
Devemos ou não assistir a Anaconda?
Sim — mas não como entretenimento, e tampouco como objeto de zombaria. Devemos assisti-lo como se lê um manifesto redigido por alguém que não sabia que estava escrevendo um. O filme é um acidente revelador: um blockbuster que, ao tentar vender medo exótico, acabou expondo a violência estrutural do olhar documental.
Sua falha técnica — o CGI artificial, o roteiro maniqueísta — é, paradoxalmente, sua força simbólica. A anaconda precisa parecer falsa para ser verdadeira: é um monstro de cinema, não de biologia. E é justamente aí que reside seu valor: como crítica involuntária da própria indústria que o produziu.
Assistir a Anaconda hoje é um exercício de semiótica reversa: não procurar o que o filme quer dizer, mas o que ele, sem querer, confessa. E o que confessa é desconfortável: que às vezes, o monstro é a única ética possível diante de quem insiste em falar em nome dos que nunca pediram para ser legendados.