Nem todo morto morre uma só vez. Alguns expiram duas: primeiro no enredo, depois no imaginário. Zed, o carcereiro do porão em Pulp Fiction, pertence a essa categoria.
Zed não tem nome completo, nem passado, nem fala relevante. Só tem uma função — ser o fundo do porão; ser o que justifica o que virá. E ainda assim, sua morte foi tão perfeita que escapou da ficção e entrou no léxico. “Zed is dead, baby!” — não é um relato. É um rito. Uma fórmula litúrgica laica, recitada com alívio, quase com prazer. Como se, ao pronunciá-la, o espectador também se limpasse.
Mas o que celebramos, afinal, quando repetimos essa frase?
A vitória do bem? A justiça poética? Ou apenas o alívio de ver o monstro nomeado, localizado e, sobretudo, extinto — como se o mal fosse um indivíduo, e não uma estrutura; como se bastasse matar um homem para redimir o mundo?
A morte de Zed é cinematograficamente simples — quase burocrática. E simbolicamente, devastadora. Ela marca o instante em que o cinema moderno abandona a tragédia e abraça o epitáfio irônico: não há luto, há hashtag. Não há julgamento, há meme. E nesse deslocamento, algo essencial se perde — ou se revela.
O porão como altar
Pulp Fiction – Tempo de Violência estreou em maio de 1994, no Festival de Cannes — onde conquistou a Palma de Ouro e abalou os alicerces da narrativa cinematográfica contemporânea. Dirigido por Quentin Tarantino, o filme é um mosaico de violência, graça e ironia, onde o sacro e o profano se confundem na cadência do slang californiano.
Zed — interpretado por Peter Greene — aparece em apenas uma sequência, mas sua presença é estrutural. Ele é o carcereiro do porão da Pawn Shop onde ele e Maynard operam, uma espécie de inferno suburbano onde o boxeador Butch Coolidge (Bruce Willis) vai resgatar um relógio de família.
Lá, encontra Marsellus Wallace amarrado, humilhado, à mercê de um ritual de violência prestes a se consumar. Zed, com sua camiseta branca manchada e olhar inexpressivo, não é um antagonista ativo: é uma condição. Um obstáculo físico cuja passividade o torna ainda mais perturbador. Um corpo que ocupa o lugar do inominável.
Informação verificável: Greene, então com 29 anos, foi escalado após uma audiência silenciosa — Tarantino queria alguém cuja mera postura evocasse ameaça banal, não teatralidade. Zed não tem monólogo, não tem motivação explícita, nem redenção possível. Sua função é ser aquele que deve ser eliminado para que o mundo siga — mais leve, mais limpo, mais justo.
É nesse vácuo biográfico que o signo se forma: Zed não é um personagem. É um espaço de projeção. O local onde depositamos tudo o que queremos ver apagado — sem processo, sem testemunhas, sem remorso.
A geografia do castigo
A cena do porão não é filmada como um clímax — é filmada como um ato administrativo.
A câmera, fixa, em plano médio, recusa o melodrama. Nenhuma música. Nenhum close no sofrimento. A luz fluorescente, crua e desbotada, apaga as sombras que costumam proteger os vilões no cinema noir. Zed não está na penumbra; está exposto, como um espécime.
Há algo quase documental na frieza da encenação — como se Tarantino dissesse: isso não é ficção. Isso é o que fazemos quando achamos que ninguém está vendo.
O corpo como texto apagado
Zed é eliminado em camadas: primeiro pelo tiro de escopeta, disparado por Marsellus Wallace; depois pela sentença anunciada fora de quadro — a motosserra. A redundância não é exibicionismo — é correção. Como se um único gesto não bastasse para garantir que o signo “Zed” fosse inteiramente riscado do sistema.
Seu corpo não é enterrado; é tratado como resíduo. Não há ritual fúnebre, apenas descarte. O porão não é túmulo — é área de serviço. Ninguém chora. Ninguém pronuncia seu nome novamente, exceto naquela frase que ecoa como uma bênção secular.
É aí que a semiótica se torna implacável:
Zed não morre como pessoa. É apagado como função. Sua morte não é trágica porque ele nunca foi sujeito — foi dispositivo. Um erro de digitação corrigido com a tecla delete, sem aviso e sem recuperação possível.
A fala que apaga o nome
“Zed is dead, baby!” — pronunciada por Butch ao telefone, com uma cadência entre desgaste e triunfo. A entonação é quase maternal: não há ódio, há desfecho. O diminutivo “baby” não é carinho; é infantilização do horror. É a linguagem se curvando para tornar o inaceitável digervel — como quem diz “o lixo já foi levado”.
Barthes escreveu que o mito transforma a história em natureza. Aqui, a violência extrema é naturalizada pela ironia. O espectador ri — não da morte em si, mas do alívio que ela traz. E esse riso é o verdadeiro ato simbólico: a adesão tácita à lógica de que certos corpos existem apenas para serem apagados, contanto que o apagamento venha com estilo.
O mal como personagem descartável
A morte de Zed revela uma mutação ética no imaginário pós-moderno: o mal já não seduz, não tenta, não fala como Lúcifer em Paradise Lost. Ele apenas existe — mudo, banal, corporal. Não é um princípio, mas um resíduo. E como resíduo, deve ser removido com eficiência, não compreendido com empatia.
Hannah Arendt via o mal como banalidade — não como monstro, mas como funcionário cumprindo ordens.
Zed é o reverso disso: não é burocrata do mal, é sua carcaça. Ele não decide; ele ocupa — e é essa ocupação silenciosa que legitima o extermínio. E é nessa passividade que reside seu perigo simbólico: ele não representa uma ideologia, mas uma possibilidade — a de que o horror pode se instalar sem discurso, sem bandeira, apenas com uma chave de porão e uma escopeta encostada na parede.
A redenção por proxy
Butch e Marsellus saem do porão não como heróis, mas como homens limpos. A violência que cometem não os corrompe — ao contrário, os absolve. Aqui, opera-se uma inversão teológica: não é o sacrifício do inocente que redime, mas o extermínio do culpado presumido. Não há julgamento — apenas reconhecimento mútuo: você viu o que eu vi. Ninguém mais precisa saber.
É essa cumplicidade silenciosa entre personagem e espectador que torna a cena tão perturbadora hoje, trinta anos depois. Vivemos numa era de justiça sumária digital, de cancelamento como ritual purificador, de inimigos reduzidos a handles apagáveis. “Zed is dead, baby!” soa menos como ficção e mais como protocolo.
E então surge a pergunta que o filme não faz — mas que sua cultura de recepção obriga-nos a formular:
Quando aprendemos a celebrar a morte do vilão, o que restou da compaixão?
A frase que sobrevive ao corpo
“Zed is dead, baby!” não é um fecho — é um convite à repetição.
Como toda fórmula mágica, ganha poder quanto mais é dita. Mas, ao contrário dos encantamentos antigos, este não invoca forças — exorciza. Exorciza a culpa de ter visto. De ter se alegrado. De ter desejado, por um instante, que o mundo fosse tão simples: um porão, um vilão, um tiro, e o retorno à luz.
Zed não é lembrado por quem foi, mas por como morreu — e por quem o matou com estilo. Sua imortalidade é paradoxal: vive não na memória, mas no esquecimento ritualizado. Um nome pronunciado só para ser enterrado, de novo e de novo, toda vez que alguém quer sentir que o mal tem um rosto, um endereço, e uma data de validade.
O cinema, aqui, não imita a vida. Ele oferece aquilo que a vida nega:
a ilusão de que apagar um homem pode apagar uma sombra.
Epílogo
No porão não há janelas.
Só uma lâmpada que pisca, e o som de algo sendo arrastado.
Depois, o silêncio.
Depois, a frase.
E depois — o mais inquietante de tudo —
o sorriso discreto no rosto de quem repete.
Peter Greene – in memoriam