A areia não absorve sangue. Ela o rejeita — forma poças, riachos vermelhos, manchas que escorrem em câmera lenta. E é aí, nesse instante em que o líquido se recusa a ser tragado pela praia, que O Resgate do Soldado Ryan deixa de ser um filme de guerra para se tornar um ato de testemunho.
Não há música ao fundo. Não há voz em off orientando o olhar. Nenhum plano-sequência heróico em câmera lenta glorifica o sacrifício. O que há é um homem caindo de joelhos, o capacete rolando na areia, o som de um tiro ecoando dentro de seu próprio crânio — e, por alguns segundos, o mundo se cala. É a surdez do trauma. É a linguagem do horror antes das palavras.
Este não é um retrato da Segunda Guerra. É um dispositivo de responsabilidade. Um convite incômodo: olhe sem redenção. Porque em Omaha Beach, em 6 de junho de 1944 — e na recriação de Spielberg, 54 anos depois — o realismo não é técnica. É escolha ética.
E a primeira e mais radical dessas escolhas é não erguer a bandeira.
O Resgate do Soldado Ryan (1998), dirigido por Steven Spielberg, com roteiro de Robert Rodat e fotografia de Janusz Kamiński, abre com 23 minutos ininterruptos na Praia de Omaha durante o Dia D — a operação militar mais letal do desembarque aliado na Normandia.
Para sua realização, Spielberg recusou apoio do Exército dos EUA por exigir liberdade criativa; treinou atores como soldados reais; usou crash cams acopladas aos capacetes; recriou o barulho do combate com gravações de artilharia real e munição de festim; e, pela primeira vez no cinema mainstream, adotou deliberadamente uma estética de documentário de combate — com lentes desfocadas, exposição irregular, grãos de película visíveis.
Informação não confirmada: há relatos de que veteranos do Dia D saíram da sala de cinema ao assistir à sequência — não por intolerância ao sangue, mas por reconhecimento visceral do som, do movimento, da ausência de comando. Eles não viam uma batalha representada. Viam a memória voltar sem pedir licença.
A cena não busca verossimilhança. Busca presença — no sentido fenomenológico: presença do corpo ferido, do tempo despedaçado, do olhar desorientado. E é nessa presença que a semiótica do filme se instaura: não por signos estáveis, mas por falhas — no foco, no som, na narrativa.
“Nós queríamos que o público sentisse que estava lá — não como espectador, mas como sobrevivente.”— Steven Spielberg, em entrevista à American Cinematographer, 1998.
A abertura de O Resgate do Soldado Ryan não é filmada — é submersa.
A câmera não observa a batalha; ela tropeça nela. Movimentos bruscos, enquadramentos truncados, foco buscando — e falhando — em encontrar um centro. Um soldado corre em direção à lente e desaparece embaçado; outro cai de costas, e a câmera, ainda em movimento, vê o céu por três segundos antes de perceber que ele está morto. Essa instabilidade técnica não é acidente. É sintoma: o olhar cinematográfico, pela primeira vez em larga escala, assume a incapacidade de compreender.
Aqui, a semiótica opera por ruído, não por código. Roland Barthes diria que o filme destrói o studium — o interesse histórico, político, até moral — para abrir espaço ao punctum: o detalhe que fere. Um dedo pendurado por um tendão. Um homem segurando suas próprias vísceras, olhando para elas como se fossem uma pergunta. Um capacete com dois furos — entrada e saída — girando na areia como um brinquedo abandonado.
O design sonoro, premiado com o Oscar, é igualmente disruptivo.
O estouro de granadas não é um efeito — é uma interrupção neural. Após a explosão que fere o Capitão Miller (Tom Hanks), o áudio mergulha em um zumbido abafado, o mundo reduzido a movimentos mudos. É o trauma acústico como metáfora da incomunicabilidade radical do horror: não há palavras para o que se vê, então o ouvido se fecha.
O silêncio não é ausência de som. É a linguagem do corpo dizendo: isto ultrapassa a narrativa.
Em Sargent (John Ford, 1943), o desembarque em Saipan termina com a bandeira hasteada ao som de hinos — gesto simbólico que transforma o caos em sentido. Em O Longo Dia (1962), os planos são amplos, estratégicos, quase cartográficos: a guerra como xadrez heroico.
Mas em Omaha Beach, em 1998, nenhuma bandeira é erguida. Nenhum discurso é proferido. Nenhum plano celebra a vitória iminente. A bandeira está ausente — e essa ausência é o signo mais eloquente do filme. É a recusa de converter o sofrimento em mito. É a escolha de não consolar.
A semiótica do vazio: onde outros filmes colocariam um ícone, Spielberg coloca um homem vomitando na areia.
Dizer que a cena da praia é “realista” é um equívoco comum. Ela não reproduz Omaha Beach; ela reencena a impossibilidade de representá-la. O que Spielberg constrói não é um documento, mas um dispositivo ético: um cinema que se nega a redimir, a explicar, a elevar. Ele não pergunta por que os homens morreram. Pergunta: o que fazemos ao olhar para isso?
Susan Sontag, em Diante da Dor dos Outros, alerta: imagens de sofrimento correm o risco de se tornarem espetáculo — o horror, mercadoria. Mas há uma exceção: quando a imagem recusa a transfiguração. Quando insiste em sua própria inadequação. É o que ocorre aqui. O filme não oferece distância heroica. Impõe proximidade incômoda. O espectador não está fora da cena — está dentro dela, desorientado, sujeito ao mesmo caos perceptivo dos soldados.
Isso é ética do olhar: não ver por, mas ver com. Não como testemunha imparcial, mas como cúmplice involuntário. Walter Benjamin escreveu que toda civilização é também uma barbárie — e que os monumentos erguidos em nome da glória muitas vezes escondem os ossos sob seus alicerces. Spielberg desmonta o monumento. Devolve os ossos à luz. Não para chocar, mas para lembrar que lembrar dói.
A praia de Omaha, no filme, não é um lugar da História com H maiúsculo. É um lugar onde a História falha — onde a narrativa se desfaz em fragmentos sensoriais: o gosto de sangue na água salgada, o peso de um rifle enterrado na areia, o olhar de um jovem que ainda não entende que está morto.
E é aí que o cinema alcança seu gesto mais filosófico:não dar sentido — mas impedir o esquecimento.
Omaha Beach, hoje, é um campo verdejante onde turistas caminham em silêncio. As crateras foram preenchidas. Os destroços, removidos. A praia voltou a ser paisagem.
Mas o cinema pode fazer o que a geografia não consegue: manter a cratera aberta.
O Resgate do Soldado Ryan não celebra a vitória. Não glorifica o sacrifício. Não ensina lições. Ele insiste — com a teimosia de um corpo que ainda sangra — em manter o instante antes do mito. Antes da estátua, do discurso, da bandeira.
Esse é o seu legado semiótico: entender que, às vezes, a linguagem mais honesta é a que não traduz. Que o respeito ao morto não está em erguer sua imagem, mas em não apressar seu silêncio.
E assim, vinte e três minutos de areia, sangue e zumbido se tornam um ato de resistência —não contra o esquecimento, mas contra a facilidade do sentido.
Um soldado, no final da sequência, alcança o paredão de pedra.Respira.A câmera se afasta — devagar, como quem pede desculpas por ter olhado tanto.Ele fecha os olhos.E, por um instante, o vento leva embora o barulho da guerra.Só resta a pergunta, sussurrada na areia:O que fizemos com o que vimos?
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