Como Richard Linklater transformou o tempo em narrativa: a poética do envelhecer em tempo real - Mensagem e Movimento
Quando Richard Linklater decidiu filmar Boyhood ao longo de 12 anos, ele não estava apenas criando um experimento cinematográfico – estava redefinindo como o cinema captura a essência da vida cotidiana.
O filme, que acompanha o crescimento do jovem Mason (Ellar Coltrane) desde a infância até o início da vida adulta, constrói sua narrativa não através de grandes eventos dramáticos, mas sim pela acumulação de pequenos momentos, conversas aparentemente banais e transformações quase imperceptíveis que, juntas, compõem o tecido da existência humana.
Neste artigo, mergulharemos na semântica do cotidiano presente em Boyhood, explorando como o filme transforma o ordinário em extraordinário, e como sua estrutura única de filmagem permite uma representação autêntica da passagem do tempo que raramente vemos no cinema contemporâneo.
O que torna Boyhood e sua semântica do cotidiano tão revolucionários é a forma como Linklater captura a passagem do tempo. Ao contrário de filmes que utilizam diferentes atores ou maquiagem para representar o envelhecimento, Boyhood nos permite testemunhar o crescimento físico real dos personagens.
“A imagem fotográfica é ontologicamente ligada ao seu referente.” – André Bazin
As mudanças físicas em Mason não são apenas visíveis, mas também autênticas: o alongamento do corpo, as transformações faciais da puberdade, as alterações na voz. Estas não são simulações, mas documentações reais do desenvolvimento humano.
“Queria capturar como uma pessoa muda ao longo do tempo, não apenas fisicamente, mas em sua essência.” – Richard Linklater
A passagem do tempo também é marcada por referências culturais: os videogames que Mason joga, os livros de Harry Potter que sua irmã lê, as músicas que tocam no rádio. Estes elementos não são meros adereços, mas funcionam como âncoras temporais, situando o espectador sem necessidade de legendas ou explicações.
Várias cenas em Boyhood funcionam como microcosmos da transformação humana, sem recorrer a artifícios dramáticos.
“Por que temos que nos mudar? Não posso simplesmente ficar aqui com vocês?”“Não funciona assim, cara. Você tem que ir com sua família.”(diálogo recriado com base na cena)
A simplicidade deste momento encapsula uma das primeiras experiências de impotência diante das decisões adultas. A câmera observa como um documentarista, sem música enfática, deixando que a emoção surja naturalmente.
As refeições em família servem como marcadores da evolução dos relacionamentos. No início, Mason é uma criança silenciosa, observando. Mais tarde, adolescente, desafia o padrasto. A mesa de jantar torna-se um palco das transformações invisíveis que o tempo opera sobre os vínculos.
Quando Mason recebe uma câmera fotográfica, não há uma grande epifania. Apenas pequenos gestos: ele fotografa uma cerca, um reflexo, um inseto. Gradualmente, a fotografia torna-se parte de sua identidade.
Como escreve David Bordwell, Linklater aposta na inteligência do espectador para conectar os pontos e perceber as transformações sem que elas precisem ser sublinhadas.
Em Boyhood, o cotidiano é o próprio protagonista. Não há formaturas, beijos de cinema ou reviravoltas. Há apenas a vida, que segue.
“Não são os grandes momentos que definem quem somos, mas a acumulação de pequenas experiências cotidianas.”(inspirado em reflexões de Richard Linklater)
Quando Mason pergunta ao pai sobre magia, a resposta é singela:
“Não. Não há elfos. Mas há momentos... momentos como este, que são uma espécie de magia.”
Essas conversas cotidianas se tornam epifanias discretas. É na banalidade que o filme encontra sua força.
A abordagem de Linklater dialoga diretamente com o realismo de Bazin: o cinema como janela da realidade, não sua simulação.
“Boyhood representa um realismo radical – não apenas por sua técnica única, mas pela recusa aos artifícios dramáticos em favor de uma observação paciente da vida como ela é vivida.”(A.O. Scott, The New York Times – tradução livre)
A fotografia de Lee Daniel reforça essa naturalidade, privilegiando luz natural e planos longos, o que intensifica a experiência do tempo real.
Os diálogos em Boyhood soam espontâneos, cheios de pausas, hesitações e silêncios significativos — marcas de Linklater desde Antes do Amanhecer.
“Pai, existe… tipo… algo como… magia no mundo?”“Como assim, magia?”“Sei lá… elfos ou algo assim.”“Não há elfos. Mas há momentos… e às vezes eles parecem mágicos.”
A câmera, discreta, mantém distância respeitosa, capturando o real sem intervir. As transições temporais são sutis — não há legendas indicando “três anos depois”, apenas o rosto de Mason mudando, as músicas e os objetos se transformando com o tempo.
“A genialidade técnica de Boyhood está em fazer o tempo parecer orgânico. Ele simplesmente acontece.”(Mark Kermode)
Em tempos de blockbusters e espetáculos, Boyhood nos pergunta: e se o verdadeiro evento for uma conversa de jantar?
“Boyhood nos lembra que a vida não é feita de momentos dramáticos isolados, mas de um fluxo contínuo de experiências que, juntas, moldam quem somos.”(Manohla Dargis, The New York Times – tradução livre)
Ao valorizar o trivial, Linklater desafia a própria gramática narrativa do cinema moderno.
Boyhood é mais do que um filme — é uma experiência de tempo e existência. Ao acompanhar 12 anos de uma vida comum, ele nos mostra que a arte pode emergir do simples, e que o cotidiano, observado com atenção, é pleno de significado.
“O que realmente acontece, o que vivemos, o resto, todo o resto, onde está? Como dar conta daquilo que acontece todos os dias e se repete todos os dias?”(Georges Perec)
Linklater responde transformando o ordinário em extraordinário. Boyhood é, acima de tudo, um convite: olhar para o que parece banal e perceber que é ali que a vida pulsa.
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