Uma criança vomita sangue e fala em acadiano.Os médicos ajustam os eletrodos.Os padres desempoeiram um ritual de 1614.
Nenhuma dessas ações explica. Elas apenas reagem — como se o mundo tivesse, de repente, perdido a gramática. Em O Exorcista, não há mistério a ser resolvido, há um fato a ser suportado: algo está ali, na cama, olhando de volta, e ri com a voz de um homem morto. A ciência esbarra em anomalias; a Igreja, em ambiguidades. Ambas falham — não por incompetência, mas por excesso de sentido. Querem interpretar o que só existe.
O horror, então, não é o que acontece naquela casa em Georgetown.É o instante em que percebemos: não há mais mapa.
Só o corpo. Só o grito. Só a presença — crua, insistente, inassimilável.
O Exorcista nasce de um caso real — ou quase. Em 1949, um menino de doze anos, identificado como Roland Doe (nome fictício), foi submetido a exorcismos pela Igreja Católica em áreas rurais de Maryland e no Colégio Jesuíta de St. Louis. William Peter Blatty, então aluno de pós-graduação em literatura na Universidade de Georgetown, leu sobre o episódio no Washington Post e guardou-o por mais de duas décadas. Em 1971, publicou o romance — não como ficção de terror, mas como thriller metafísico, escrito com rigor documental e diálogo teológico afiado.
O filme, dirigido por William Friedkin em 1973, não foi uma adaptação, mas uma transmutação. Friedkin recusou trilha sonora original, usou luz natural, exigiu tomadas em uma só continuidade, e filmou cenas-chave sem que os atores soubessem o que viria em seguida — como se quisesse capturar, não encenar, o choque. O resultado: um filme que respira como um corpo sob estresse. Ganhou 10 indicações ao Oscar, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor, e provocou desmaios, missas de reparação e debates no Vaticano.
Blatty acreditava em Deus. Friedkin, não.E é nessa fissura — entre fé escrita e descrença filmada — que o horror se torna linguagem.
Os médicos entram com equipamentos como sacerdotes com incensórios. Tomografias, eletroencefalogramas, cateterismos — cada exame é um ato de fé na legibilidade do corpo. Mas os dados não convergem. Tumores são descartados. Epilepsia, descartada. Psicose? Regan não mente — ela revela coisas que não poderia saber. O discurso médico, então, se esvazia em eufemismos: “transtorno dissociativo”, “psicogênese inexplicável”. A ciência não é refutada; é interrompida. Seu erro não é a arrogância, mas a honestidade: reconhece seu limite — e cala.
Padre Karras, psiquiatra e jesuíta, encarna essa crise. Sua fé já sangra antes do exorcismo: duvida da oração, da eficácia da Igreja, da própria graça. O ritual de Rituale Romanum, por sua vez, não é um ato de poder, mas de obediência formal. Friedkin filma os latins como se fossem instruções de emergência lidas por alguém que não acredita no manual. O demônio ri — não porque é forte, mas porque sabe que o rito perdeu seu lastro simbólico. Já não é uma invocação; é uma repetição.
Barthes diria: o signo religioso tornou-se estéril.Não há mais relação entre forma e força.
E então — como em toda falha semiótica — o corpo fala.
Regan não é um símbolo do Mal. Ela é o Mal como fenômeno.Sua voz não é metáfora: é acústica. Friedkin misturou gravações de um ator idoso, sons de porcos sendo abatidos e sua própria respiração asmática — uma fala que vem do fora, do não-humano, mesmo quando sai de uma garganta infantil.
Seus movimentos são igualmente anti-narrativos. A cabeça girando 360° não ilustra possessão; desafia a anatomia como língua. O corpo não mais obedece à lógica do desejo, do trauma ou da doença — ele se torna signo de si mesmo. Não remete. Não significa além. Simplesmente está: contorcido, sujo, blasfemo.
Isso é o que Benjamin chamaria de presença aurática invertida: não a singularidade sacra do original, mas a singularidade profana do impossível. A cabeça que gira não pertence ao cinema de efeitos — pertence ao cinema de testemunho. Friedkin, notoriamente, usou cabos reais para puxar Linda Blair — e o estalo do pescoço que ouvimos é quase o da atriz.
O horror, aqui, não é o sobrenatural.É o natural rompendo seus próprios limites — e ainda assim funcionando.
Pazuzu — nome do demônio, embora nunca pronunciado no filme — é uma divindade mesopotâmica da tempestade e dos ventos do deserto. Não é Lúcifer, não é Satanás. É uma entidade pré-teológica, anterior à moral. Sua fala é polifônica: zomba de Karras com a voz de sua mãe morta, cita teologia com precisão, pergunta “onde está seu Deus?” — não como dúvida, mas como provocação linguística.
Enquanto isso, Deus não responde.Nenhum milagre. Nenhum clarão. Nenhuma voz do céu.Só o vento entrando pela janela após a morte de Merrin — como se o silêncio divino tivesse peso atmosférico.
A grandeza de O Exorcista não está em provar a existência do demônio — mas em mostrar que a ausência de explicação não é ausência de responsabilidade. Karras não vence por fé, mas por presença. Ele não exorciza com palavras, mas com seu corpo: grita, cai, morre substituindo Regan no abismo. Sua redenção não é teológica — é ética. No momento em que o sentido falha, o que resta é o gesto absoluto: o sacrifício como linguagem última.
Isso ecoa Levinas: a ética nasce não do saber, mas do encontro com o rosto do Outro — mesmo quando esse rosto está coberto de vômito verde e sussurra obscenidades. Karras não salva Regan por acreditar, mas por não poder desviar o olhar. A possessão é, nesse sentido, um paradoxo: o Mal ocupa o corpo, mas é a humanidade dos outros que ele coloca à prova.
Friedkin filma essa ética com crueldade formal. Nada é sublinhado. Nenhuma música avisa que algo sagrado está ocorrendo. A cena do exorcismo final é filmada em planos médios, quase burocráticos — como se o cinema, também, tivesse desistido de interpretar, e optado por registrar.
O que o filme propõe, então, é uma inversão radical:não é a fé que resiste ao horror — é o horror que revela onde ainda há fé, mesmo sem nome.
O Exorcista não é sobre possessão demoníaca.É sobre o que acontece quando todos os mapas se rasgam — e ainda assim alguém caminha.
Blatty escreveu uma história de fé restaurada. Friedkin filmou uma de testemunho irredutível. Entre um e outro, nasce uma obra que não consola, não explica, não redime com facilidade. Ela apenas põe diante de nós o que não cabe no discurso: o corpo que sofre, o rito que falha, o silêncio que pesa mais que qualquer palavra sagrada.
E talvez seja aí — nesse limiar entre ciência e religião, entre dúvida e dever — que a arte encontre sua função mais antiga: não dar respostas, mas tornar insuportável viver sem fazê-las.
Na última cena, Chris carrega Regan pelas escadas da casa em Georgetown — a mesma escada onde Merrin caiu, onde Karras se lançou. A luz da manhã é fria, banal. Nenhuma música. Nenhuma bênção. Só o ruído dos passos, o vento, o peso de um corpo salvo — mas não curado.
O mal não foi vencido.Foi deslocado.
E o que resta, no fim, não é certeza —é a coragem de descer a escada, mesmo sem saber quem está ao seu lado.
Ler o romance de William Peter Blatty é mergulhar numa teodiceia disfarçada de thriller — um texto meticuloso, quase apologético, onde cada detalhe serve à restauração da fé. Blatty não duvida: ele argumenta. Seu Karras é um homem em crise, sim, mas a narrativa o conduz, passo a passo, à redenção racional. O livro é uma defesa — elegante, erudita, profundamente católica.
Já o filme de Friedkin é um ato de resistência estética. Ele não quer convencer; quer testemunhar. Friedkin remove quase toda a explicação teológica do livro: nenhum debate sobre a natureza do Mal, nenhuma citação de Santo Agostinho, nenhuma promessa de graça futura. O que resta é o corpo, o som, o silêncio — e a pergunta: o que você faria, se nada funcionasse?
Portanto:Leia o livro se deseja entender como a fé moderna tenta negociar com o horror.Veja o filme — mais de uma vez, em silêncio, sem pausas — se deseja sentir como o horror, por vezes, é a única linguagem que ainda nos obriga a ser humanos.
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