Nenhuma bruxa nasce bruxa. Ela é nomeada. Antes do chapéu pontudo, antes da vassoura, antes mesmo do gato — há um momento em que alguém decide que aquilo não é apenas diferente, mas perigoso.
Em Wicked, esse momento não é dramático. Não há trovão, não há pacto com demônios. Há apenas uma criança verde nascendo num mundo que acredita no rosa como inocência e no dourado como destino. A maldade, aqui, não é escolha. É atribuição.
E é nesse intervalo tênue — entre o que somos e o que nos chamam — que o filme de Jon M. Chu se instala, não como fábula, mas como inquérito: o que acontece quando a história oficial é contada pelos vencedores, e os vencidos têm, enfim, orquestra, voz afinada e direito à réplica?
Wicked não é exatamente um filme de 2024. É o desdobramento de um fenômeno teatral iniciado em 2003, com livro de Winnie Holzman e música de Stephen Schwartz, baseado no romance homônimo de Gregory Maguire (1995), este, por sua vez, uma reescrita política de O Mágico de Oz, de L. Frank Baum (1900).
A versão cinematográfica, dirigida por Jon M. Chu (In the Heights, Crazy Rich Asians), divide o musical original em duas partes — a primeira estreou globalmente em 27 de novembro de 2024; a segunda, em novembro de 2025. Cynthia Erivo interpreta Elphaba, Ariana Grande é Glinda, com Michelle Yeoh como Madame Morrible e Jeff Goldblum como o Mágico.
A escolha de Chu não é acidental: sua assinatura é a coreografia da emoção coletiva — corpos em movimento sincrônico, cor como linguagem, musicalidade como estrutura social. Aqui, porém, a aposta é mais delicada: não basta encantar. É preciso desestabilizar o encantamento.
A pele de Elphaba não é maquiagem. É acusação.
Na semiótica de Oz, o verde não remete à natureza, mas à anomalia. É o signo que precede a fala — antes que Elphaba abra a boca, já está condenada. Barthes diria que sua cor é um mito: não descreve, sentencia. O público do espetáculo (dentro e fora da tela) sabe, desde o primeiro plano, que aquela criança não pertence. E o filme, com coragem rara no blockbuster, insiste em mostrar o peso desse pertencimento negado: os sussurros, os cochichos disfarçados de piedade, o horror disfarçado de curiosidade médica.
A fotografia de Alice Brooks trabalha com contrastes brutais: o rosa pastel de Glinda, o dourado cintilante da Cidade das Esmeraldas, o cinza institucional de Shiz — tudo para que o verde de Elphaba não seja exótico, mas inconveniente. Sua cor não brilha. Insiste. É um signo que não pede licença para existir.
E o figurino — obra de Paul Tazewell, agora adaptada para a escala cinematográfica — transforma roupas em declarações éticas: os vestidos de Glinda são leves, aéreos, feitos para serem vistos; os de Elphaba, inicialmente rígidos e cobertos, vão ganhando volume, asas, verticalidade — até se tornarem, no clímax, uma arquitetura de resistência.
Elphaba e Glinda não são opostas. São refrações.
O cerne de Wicked não é a redenção da bruxa má — é a impossibilidade de separar “bem” e “mal” quando ambos habitam o mesmo sistema. Glinda é boa porque é aceita. Elphaba é má porque é excluída. Mas o filme evita o maniqueísmo fácil: Glinda não é ingênua; Elphaba não é justa por natureza. Ambas negociam, cedem, mentem — uma para sobreviver, outra para ascender.
O dueto “For Good” é, nesse sentido, um manifesto ético disfarçado de balada: “Eu aprendi a ver com seus olhos / Você aprendeu a voar com meus”. Não há salvação individual. Há transformação relacional. A amizade, aqui, não é consolo — é testemunho. E testemunhar, em tempos de narrativas hegemônicas, é um ato subversivo.
Chu intensifica essa tensão com escolhas de montagem: planos paralelos que se recusam a sincronizar, closes que desviam do rosto no momento do reconhecimento, silêncios que duram mais que as notas. A linguagem visual não ilustra a música — contrapõe-se a ela. O espetáculo é belo; a emoção, ambígua.
Há um risco estrutural em Wicked: o de tornar a exclusão esteticamente palatável.
O musical original já lidava com essa tensão — como falar de preconceito, manipulação política e apagamento histórico num formato que exige coreografias impecáveis e desfechos emocionais redondos?
A versão cinematográfica, pressionada pelas expectativas do gênero (musical épico + franquia + estrelato pop), flerta com a diluição. Ariana Grande, por exemplo, traz uma Glinda mais cômica, mais TikTokável — o que, em certos momentos, ameaça transformar a crítica social em persona.
Mas há também ganhos. A câmera permite intimidade que o palco nega: vemos o tremor na mão de Elphaba antes de lançar seu primeiro feitiço “perigoso”; vemos a hesitação microscópica de Glinda ao escolher o aplauso em vez da lealdade. O cinema, aqui, não suaviza — aprofunda o paradoxo: quanto mais bela a forma, mais incômoda a pergunta.
Wicked propõe uma inversão sutil, mas radical: o mal não é uma essência. É uma posição.
Elphaba não é má porque age contra o bem — é má porque age fora do lugar que lhe foi atribuído. Sua ética não é universal; é situada. Quando ela questiona o Mágico — “Quem escreveu essas leis?” —, não faz filosofia. Faz genealogia, no sentido foucaultiano: expõe a moral como construção de poder, não como revelação divina.
E, ao contrário de Coringa, que romantiza a violência como única linguagem do invisível, Wicked insiste na palavra, no canto, na argumentação. A bruxa não quer destruir Oz. Quer reinterpretá-lo. Sua magia não é caótica: é gramatical. Ela conjuga verbos proibidos, declina substantivos estigmatizados. Ela escreve no modo subjuntivo: se eu fosse aceita… se me ouvissem… se o verde fosse apenas uma cor.
Nesse sentido, o filme dialoga secretamente com Hannah Arendt — não sobre a banalidade do mal, mas sobre a banalidade do bem: como a conformidade, disfarçada de virtude, pode ser o solo mais fértil para a injustiça. Glinda, no fim, não é vilã. É cúmplice por elegância.
Wicked não nos devolve uma bruxa reabilitada. Devolve-nos a pergunta que o original suprimiu: quem tem o direito de nomear?
O filme sabe que não basta inverter papéis. É preciso desmontar a própria lógica da nomeação — aquela que transforma diferença em defeito, desobediência em delito, voz alta em ameaça.
Elphaba não quer ser amada. Quer ser ouvida sem tradução. E o mais perturbador — ou libertador — é que, ao fim da primeira parte, ela ainda não é. O aplauso ainda não veio. O perdão, menos ainda. O que resta é o canto — solitário, dissonante, mas irrecusável.
Isso não é otimismo. É esperança como prática. A esperança de que um dia possamos dizer: sim, ela é verde — e daí?
Toda criança que já se sentiu errada na cor, no tom de voz, no jeito de amar, reconhecerá em Elphaba não um personagem, mas um espelho imperfeito — rachado, sim, mas ainda capaz de refletir.Oz não é um lugar no mapa.É o que acontece quando alguém decide que você não pertence —e você, mesmo assim, abre a boca e canta.
Sim — mas não como escape, e sim como exercício.O filme não é perfeito: há momentos em que a máquina do espetáculo ameaça engolir a subversão; há escolhas de ritmo que privilegiam o viral sobre o visceral. Mas sua força está justamente nessa tensão: entre o que o sistema permite dizer e o que o corpo insiste em gritar. Assista se estiver disposto a ouvir não apenas as notas altas de Cynthia Erivo — mas o silêncio que as antecede. Assista se quiser ver como uma história centenária pode, com astúcia e cor, ser desmontada e reerguida como um ato de justiça poética.
Não assista se busca redenção fácil.Assista se aceita que, às vezes, o lado bom do mal é simplesmente o direito de existir — sem pedir desculpas pela própria sombra.
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