Constantine: Dos Quadrinhos ao Filme – Uma Leitura Crítica e Semiótica do Bem, do Mal e da Redenção
A figura de John Constantine transita entre mundos – o físico e o espiritual, o humano e o demoníaco. Criado por Alan Moore em 1985 para os quadrinhos “Swamp Thing” e posteriormente protagonista da série “Hellblazer” da Vertigo/DC Comics, este personagem complexo ganhou as telas em 2005 com Keanu Reeves no papel principal.
Através de uma leitura semiótica, podemos desvendar as camadas de significado presentes tanto na obra original quanto em sua adaptação cinematográfica, explorando como ambas representam o eterno conflito entre luz e trevas.

Constantine nos Quadrinhos: O Antimito do Herói
Nos quadrinhos, John Constantine emerge como a antítese do herói tradicional. Britânico, sarcástico e moralmente ambíguo, ele navega por um mundo onde o bem e o mal não são absolutos, mas nuances de cinza. Sua origem em Liverpool e seu sotaque carregado não são meros detalhes estéticos – são signos que comunicam sua posição como outsider, como alguém que observa o sistema de fora e o questiona constantemente.
A linguagem visual dos quadrinhos utiliza uma rica simbologia religiosa e ocultista. Cruzes, pentagramas e outros símbolos místicos não são apenas elementos decorativos, mas textos visuais que comunicam a tensão entre o sagrado e o profano que permeia a existência do personagem. Constantine manipula estes símbolos como ferramentas, subvertendo seu significado tradicional e revelando a arbitrariedade dos sistemas de poder que representam.
O Constantine dos quadrinhos é um vigarista cósmico, alguém que engana tanto anjos quanto demônios. Sua moralidade complexa o coloca como um signo da condição humana contemporânea – preso entre sistemas de crença em colapso, buscando sentido em um mundo onde as antigas certezas se dissolveram. Como afirma um dos diálogos mais emblemáticos dos quadrinhos: “Eu não sou um bom homem, mas sei reconhecer o mal quando o vejo.”
O Filme Constantine (2005): Hollywood e a Adaptação
A adaptação cinematográfica de 2005, dirigida por Francis Lawrence, transforma significativamente o personagem. Keanu Reeves apresenta um Constantine americano, sediado em Los Angeles, com visual sóbrio e distante da estética punk britânica dos quadrinhos. Esta transformação não é apenas estética – é uma ressignificação semiótica que adapta o personagem para um público mais amplo, alterando seu contexto cultural.
A ambientação sombria e os efeitos visuais do filme funcionam como signos do inferno e da decadência urbana. Los Angeles é retratada como um purgatório contemporâneo, onde o céu e o inferno disputam almas em meio à poluição e ao concreto. A fotografia amarelada e esverdeada cria uma atmosfera de deterioração que comunica visualmente a ideia de um mundo em decomposição moral e espiritual.
O filme incorpora elementos do gênero neo-noir e do terror sobrenatural, criando uma linguagem visual que traduz para o cinema a atmosfera dos quadrinhos. As cenas de exorcismo, as visitas ao inferno e os encontros com anjos e demônios são construídos como espetáculos visuais que comunicam, através da estética, as tensões teológicas e filosóficas da narrativa.

Semiótica do Bem e do Mal
Tanto nos quadrinhos quanto no filme, a religião funciona como um sistema de signos que Constantine manipula e questiona. Cruzes, água benta e rituais de exorcismo são utilizados não apenas como ferramentas contra o mal, mas como símbolos cujo poder deriva do significado que lhes é atribuído. Constantine não é um homem de fé – é alguém que compreende a linguagem da fé e a utiliza pragmaticamente.

A personagem Gabriel, interpretada por Tilda Swinton, representa a ambiguidade moral presente nas forças celestiais. Sua androginia não é apenas uma escolha estética, mas um signo que comunica a transcendência das categorias binárias – incluindo o bem e o mal. Quando Gabriel revela seu plano de libertar o filho de Lúcifer para “purificar” a humanidade, o filme subverte a expectativa de que o divino é necessariamente benigno, questionando a própria natureza da bondade.
O inferno é representado visualmente como uma versão em ruínas do mundo humano, consumido por chamas e tempestades. Esta escolha semiótica comunica a ideia de que o inferno não é um lugar distante, mas uma realidade paralela que reflete e amplifica a decadência do mundo físico. Nos quadrinhos, o inferno é frequentemente mais metafórico e pessoal, adaptando-se aos medos e culpas de cada indivíduo.
O cigarro, presente tanto nos quadrinhos quanto no filme, funciona como um poderoso signo de autodestruição e mortalidade. Constantine fuma constantemente, mesmo sabendo que isso o está matando – uma metáfora visual para sua relação autodestrutiva com o mundo sobrenatural. O câncer que desenvolve nos pulmões torna-se um texto inscrito em seu corpo, comunicando sua fragilidade humana e a inevitabilidade da morte.
O Corpo como Texto Semiótico
O corpo de Constantine, marcado pela doença terminal, funciona como um texto semiótico que comunica a fragilidade da condição humana. Seu câncer não é apenas um elemento de trama, mas um signo da mortalidade que o personagem tenta desesperadamente transcender. Nos quadrinhos, Constantine sobrevive ao câncer através de um elaborado esquema para enganar três demônios, enquanto no filme, sua cura vem como consequência de seu sacrifício final.

O sacrifício final de Constantine no filme, quando ele corta seus pulsos para atrair Lúcifer, transforma seu corpo em um símbolo de redenção. O sangue derramado evoca a imagética cristã do sacrifício, enquanto seu gesto suicida paradoxalmente se torna um ato de afirmação da vida. Este momento cristaliza a tensão central do personagem – alguém condenado ao inferno que, através de um ato de aparente desespero, encontra uma forma de transcendência.
A relação entre corpo físico, alma e destino é central tanto nos quadrinhos quanto no filme. Constantine existe na intersecção entre o material e o espiritual, e seu corpo torna-se o campo de batalha onde estas forças se confrontam. Sua capacidade de ver demônios e anjos – de enxergar além do véu da realidade comum – é apresentada como uma maldição, um dom indesejado que o marca como diferente e o condena a uma existência de constante confronto com o sobrenatural.
Interpretação Semiótica dos Personagens
Constantine funciona como um signo da rebeldia contra a ordem divina. Sua recusa em aceitar as regras do céu e do inferno, sua insistência em encontrar uma terceira via, o posiciona como um trickster, uma figura que desafia as categorias estabelecidas. Nos quadrinhos, esta rebeldia tem frequentemente um caráter político, com Constantine enfrentando não apenas demônios, mas também figuras de autoridade humanas.

Gabriel, interpretado por Tilda Swinton no filme, encarna a ambiguidade angelical. Sua androginia visual comunica a transcendência das categorias binárias, enquanto suas ações revelam uma compreensão distorcida da vontade divina. Gabriel representa o perigo do dogmatismo e da certeza moral absoluta – um anjo que, em sua busca por pureza, torna-se mais demoníaco que os próprios demônios.
Lúcifer, interpretado por Peter Stormare, é apresentado como um signo carismático do mal sedutor. Vestido de branco, com os pés sujos de alcatrão, ele combina elegância e corrupção. Sua representação visual comunica a natureza enganosa do mal – atraente na superfície, mas fundamentalmente corrupto. O confronto final entre Constantine e Lúcifer no filme, ocorrendo em um espelho d’água, cria uma rica textura semiótica que evoca o batismo e a purificação, subvertendo estes símbolos religiosos.
Angela Dodson, interpretada por Rachel Weisz, representa o signo da inocência e da fé em conflito. Sua profissão como detetive a posiciona como alguém que busca a verdade através de métodos racionais, enquanto sua jornada ao longo do filme a leva a confrontar realidades que transcendem a razão. Sua transformação ao longo da narrativa comunica a tensão entre ceticismo e fé que caracteriza a experiência religiosa contemporânea.
Comparando Livro e Filme
Nos quadrinhos, Constantine é frequentemente apresentado como uma figura mais politizada, cujas batalhas contra o sobrenatural refletem críticas sociais e políticas. Seu cinismo e ironia funcionam como ferramentas de desconstrução não apenas do mal sobrenatural, mas também das instituições humanas que perpetuam injustiças. Esta dimensão política é significativamente reduzida no filme, que foca mais na jornada pessoal de redenção do protagonista.
Do político ao pessoal: transformações narrativas na adaptação
O filme adapta a obra original para o espetáculo visual, transformando elementos que nos quadrinhos são sugeridos ou metafóricos em sequências visualmente impactantes. Esta transformação não é apenas estilística, mas semiótica – altera o modo como os significados são construídos e comunicados. Enquanto os quadrinhos frequentemente deixam espaço para a interpretação do leitor, o filme concretiza visualmente conceitos como o inferno, os demônios e os anjos.
Apesar destas diferenças, tanto o quadrinho quanto o filme compartilham uma preocupação central com os temas da escolha, do destino e da redenção. Em ambos, Constantine é apresentado como alguém que busca transcender um destino aparentemente selado, questionando a justiça de um sistema cósmico que condena almas ao tormento eterno. Esta busca por agência em um universo determinista constitui o núcleo semiótico que une as duas versões do personagem.
Conclusão
John Constantine, tanto nos quadrinhos quanto no cinema, emerge como uma figura híbrida – nem herói nem vilão, nem santo nem pecador, mas um ser humano complexo navegando entre extremos. Sua jornada através do sobrenatural funciona como uma metáfora para a condição humana contemporânea, onde antigas certezas se dissolveram e os indivíduos são forçados a criar seu próprio sentido em um universo aparentemente indiferente.
A análise semiótica revela que, apesar das diferenças superficiais, ambas as versões do personagem compartilham um núcleo simbólico comum – a tensão entre determinismo e livre-arbítrio, entre aceitação e rebeldia. Constantine não é tanto um herói quanto um espelho das contradições humanas, refletindo nossa própria luta para encontrar significado e redenção em um mundo onde o bem e o mal raramente são absolutos.