Memória e Identidade na Obra Ainda Estou Aqui: Uma Análise Crítica e Semiótica — do testemunho à resistência estética
A obra “Ainda Estou Aqui” representa um marco significativo na literatura brasileira contemporânea, trazendo à tona as complexas relações entre memória, identidade e silenciamento histórico.
O livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva e sua adaptação cinematográfica dirigida por Walter Salles oferecem um terreno fértil para explorar como as experiências traumáticas da ditadura militar brasileira continuam a reverberar no presente, moldando identidades individuais e coletivas.
Este artigo propõe uma análise crítica e semiótica dessas obras, investigando como ambas articulam a memória como resistência política e como constroem narrativas que desafiam o esquecimento institucionalizado.
Através de uma leitura atenta dos elementos simbólicos, estruturas narrativas e escolhas estéticas, buscaremos compreender como livro e filme se complementam na construção de um discurso sobre trauma, sobrevivência e dignidade.

Contexto Histórico: Memória Como Ato Político
Para compreender a profundidade da obra “Ainda Estou Aqui”, é essencial contextualizar o período histórico que serve como pano de fundo para a narrativa. Em janeiro de 1971, o deputado Rubens Paiva, pai de Marcelo, foi sequestrado por agentes da ditadura militar brasileira, tornando-se um dos muitos desaparecidos políticos do regime. Este evento traumático é o epicentro a partir do qual as narrativas do livro e do filme se desenvolvem.
A ditadura militar brasileira (1964-1985) foi marcada pela sistemática violação de direitos humanos, censura, perseguição política e uma política deliberada de apagamento histórico. Neste contexto, o ato de lembrar e narrar torna-se intrinsecamente político, uma forma de resistência contra o silenciamento oficial e a impunidade que caracterizaram o período pós-ditatorial no Brasil.
O período da ditadura militar brasileira (1964-1985) serve como contexto histórico fundamental para compreender a obra
“A memória é um campo de batalha política. Lembrar, neste contexto, não é apenas um ato pessoal, mas uma forma de resistência coletiva contra o apagamento histórico.”
Michael Pollak, sociólogo
A figura de Eunice Paiva, mãe de Marcelo e esposa de Rubens, emerge como símbolo central desta resistência. Forçada a reinventar-se após o desaparecimento do marido, Eunice formou-se em Direito e tornou-se uma importante defensora dos direitos indígenas e das famílias de desaparecidos políticos, encarnando a dignidade e a resiliência frente ao trauma coletivo.
Do Testemunho à Ficção: O Livro Como Ato de Resistência
Publicado em 2015, o livro “Ainda Estou Aqui” representa um marco na literatura testimonial brasileira. Marcelo Rubens Paiva constrói uma narrativa que entrelaça memórias pessoais e coletivas, criando um texto que é simultaneamente autobiografia, biografia da mãe e documento histórico. A escrita torna-se, assim, uma ferramenta de memória e denúncia, um meio de processar o trauma individual e coletivo.
A narrativa de Marcelo Rubens Paiva entrelaça memórias pessoais e reflexões sobre a identidade brasileira
A linguagem autobiográfica empregada por Paiva revela uma tentativa de dar sentido ao trauma através da escrita. O autor utiliza uma prosa direta, por vezes fragmentada, que espelha o próprio processo de rememoração e a natureza lacunar da memória traumática. Essa estrutura narrativa não-linear reflete a complexidade do trabalho de memória e a dificuldade de integrar experiências traumáticas à narrativa identitária.
Símbolos Recorrentes e Sua Significação
O Corpo Ausente
A ausência do corpo de Rubens Paiva funciona como metáfora central da obra, representando não apenas a perda pessoal, mas também a política de desaparecimentos forçados como estratégia de terror de Estado. A passagem em que Marcelo descreve a carteira vazia do pai, encontrada anos depois, simboliza esta ausência materializada em objetos cotidianos.
A Casa como Espaço de Memória
A residência familiar emerge como espaço simbólico onde memórias são preservadas e ressignificadas. Os cômodos, móveis e objetos funcionam como âncoras mnemônicas que conectam passado e presente, constituindo um arquivo material da memória familiar e, por extensão, da memória histórica brasileira.
Objetos pessoais funcionam como âncoras de memória e símbolos da ausência na narrativa de Paiva
O papel de Eunice Paiva na narrativa transcende o biográfico, transformando-a em metáfora da resistência e dignidade frente ao esquecimento coletivo. Sua trajetória de reinvenção pessoal e profissional após o desaparecimento do marido representa a capacidade de reconstrução identitária mesmo diante do trauma extremo. Ao documentar a progressiva perda de memória da mãe devido ao Alzheimer, Paiva estabelece um paralelo sutil entre o esquecimento individual e o apagamento histórico promovido pelo Estado brasileiro.
“A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.”
Stuart Hall, teórico cultural
A Transposição Cinematográfica: O Olhar da Câmera
A adaptação cinematográfica de “Ainda Estou Aqui”, dirigida por Walter Salles, representa uma importante transposição intersemiótica da obra literária. O filme, lançado em 2023, traduz para a linguagem audiovisual as complexas camadas de memória e identidade presentes no livro, utilizando recursos estéticos específicos do cinema para construir sua própria narrativa sobre trauma e resistência.

Estética Visual como Tradutora de Memória
A paleta de cores do filme, predominantemente composta por tons terrosos e esmaecidos, funciona como significante visual da memória e do passar do tempo. Salles utiliza variações sutis de iluminação e saturação para diferenciar temporalidades: cenas do passado frequentemente apresentam tons mais quentes e saturados, enquanto o presente é retratado com cores mais frias e desaturadas, espelhando o processo de esmaecimento da memória.

Os planos-sequência longos e contemplativos, característicos da cinematografia de Salles, criam um ritmo narrativo que convida o espectador a habitar os espaços e tempos da memória. A câmera frequentemente se detém em objetos cotidianos, transformando-os em signos carregados de significado emocional e histórico, numa tradução visual do processo de rememoração descrito no livro.
Atuação como Corporificação da Memória
A atuação de Fernanda Torres como Eunice Paiva merece destaque especial na análise semiótica do filme. Através de uma performance contida e precisa, Torres corporifica não apenas a figura histórica de Eunice, mas também o próprio conceito de resistência através da memória. Sua gestualidade, especialmente nas cenas em que Eunice arruma repetidamente a cama do marido ausente, transforma ações cotidianas em rituais de preservação da memória e afirmação da presença na ausência.

Análise Semiótica: Memória Como Signo
Aplicando conceitos da semiótica de Charles Sanders Peirce, podemos compreender a memória como um complexo sistema de signos que medeia nossa relação com o passado e fundamenta a construção identitária. Na obra “Ainda Estou Aqui”, tanto o livro quanto o filme articulam diferentes categorias de signos para representar a memória e sua relação com a identidade.
Os Signos da Ausência
Fotografias
As fotografias de família funcionam como signos icônicos que estabelecem uma relação de semelhança com o passado, mas também como índices que atestam a existência prévia daquilo que representam. No filme, os closes em fotografias antigas criam momentos de suspensão narrativa que convidam à contemplação da passagem do tempo.
Objetos Pessoais
A carteira vazia de Rubens Paiva, descrita no livro e visualmente representada no filme, funciona como índice da ausência. Objetos cotidianos transformam-se em relíquias carregadas de significado afetivo e histórico, estabelecendo uma ponte material entre presente e passado.
Espaços Domésticos
A casa familiar opera como um complexo signo espacial que encapsula memórias e identidades. Cada cômodo, móvel e objeto constitui um nó em uma rede de significados que conecta histórias pessoais e coletivas, funcionando como uma metáfora espacial da memória.

Na perspectiva semiótica, a transformação do “eu” em signo coletivo representa um dos aspectos mais significativos da obra. Ao narrar sua história familiar, Marcelo Rubens Paiva transcende o meramente autobiográfico, transformando experiências pessoais em signos de processos históricos e sociais mais amplos. Esta operação semiótica permite que o leitor/espectador reconheça no particular o universal, estabelecendo uma ponte entre memória individual e coletiva.
“Todo signo é, nesse sentido, uma forma de presença que marca uma ausência. Na obra ‘Ainda Estou Aqui’, os signos da memória funcionam como presenças que marcam múltiplas ausências: a do pai desaparecido, a da justiça histórica, a da memória coletiva.”
Lucia Santaella, semioticista brasileira
O Silêncio Como Linguagem
Um aspecto fundamental tanto do livro quanto do filme é a exploração do silêncio como forma significante. O silêncio opera em múltiplos níveis: como estratégia narrativa, como tema e como posicionamento ético-político frente ao trauma histórico. Longe de representar ausência de significado, o silêncio emerge como um espaço semiótico densamente carregado.

No livro, Paiva utiliza elipses, reticências e espaços em branco para marcar os limites do dizível, os pontos onde a linguagem verbal se mostra insuficiente para expressar a experiência traumática. Estes vazios textuais não representam falhas na comunicação, mas sim uma forma alternativa de significação que respeita a natureza frequentemente inarticulável do trauma.
No filme, Salles traduz esta poética do silêncio através de planos contemplativos, pausas na ação e momentos de quietude que permitem ao espectador habitar o espaço emocional das personagens. Os silêncios são pontuados por sons ambientais – o tique-taque de um relógio, o vento nas cortinas – que adquirem dimensão significante, funcionando como contraponto sonoro ao silenciamento histórico.
Silêncio Literário
As lacunas narrativas, os espaços em branco e as elipses no texto de Paiva funcionam como significantes do trauma e da memória fragmentada. O não-dito torna-se tão importante quanto o dito, criando um texto que respira através de seus silêncios.
Silêncio Cinematográfico
Os longos planos sem diálogo, o uso expressivo do som ambiente e as pausas constituem a gramática visual do silêncio no filme de Salles. Isso cria uma experiência sensorial que comunica além das palavras.

Esta poética do silêncio estabelece um paralelo com o silenciamento histórico imposto pela ditadura militar e perpetuado pelas políticas de esquecimento no período democrático. Ao incorporar o silêncio como elemento estrutural de suas narrativas, tanto Paiva quanto Salles transformam a ausência em presença significante, o vazio em espaço de resistência.
Conclusão: Memória, Identidade e Resistência
A análise crítica e semiótica de “Ainda Estou Aqui” revela como memória e identidade se entrelaçam na construção de narrativas de resistência. Através de diferentes linguagens e recursos expressivos, livro e filme articulam um discurso sobre o Brasil, a dor e a sobrevivência.
A relevância de “Ainda Estou Aqui” no Brasil reside precisamente em sua capacidade de articular, através da arte, questões fundamentais sobre justiça histórica. Em um país onde o passado ditatorial permanece insuficientemente elaborado, onde a impunidade persiste e onde políticas de esquecimento são frequentemente institucionalizadas, obras como esta cumprem função essencial de resistência cultural e política.
O lembrar emerge, assim, como ato político por excelência. Ao narrar histórias silenciadas, ao dar forma estética ao trauma histórico, ao transformar a ausência em presença significante, tanto Paiva quanto Salles contribuem para a construção de uma memória cultural que resiste ao apagamento e afirma a dignidade dos que foram silenciados pela violência de Estado.
“A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva. Sua busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje.”
Jacques Le Goff, historiador
Memória e Identidade
Livro e filme complementam-se na construção deste discurso sobre memória e identidade, cada um explorando as potencialidades expressivas de sua linguagem específica. O livro de Paiva nos oferece a intimidade da voz narrativa e a complexidade da reflexão autobiográfica. O filme de Salles traduz estas experiências em imagens e sons que apelam diretamente aos sentidos, criando uma experiência estética que engaja o espectador.
Em última análise, “Ainda Estou Aqui” nos convida a refletir sobre como memórias pessoais e coletivas se entrelaçam na formação de nossas identidades. Mais ainda, nos mostra como o passado continua a habitar o presente. E ainda, sobre como a arte pode funcionar como espaço privilegiado para a elaboração de traumas históricos. Em um país que ainda luta para confrontar seu passado autoritário, estas reflexões permanecem urgentes e necessárias.
“No gesto silencioso de arrumar a cama vazia, Eunice Paiva afirma o que a história tentou apagar: a permanência da memória. Ainda estamos aqui.”